Terra Atípica



DEUS E O HOMEM

Tudo o que Jesus Cristo deixou dito é de infinita importância, mas conforme a inclinação passageira dos nossos pensamentos, assim damos mais importância a uma ou a outra passagem dos Evangelhos.

Há dias, dei por mim a reparar, como se o fizesse pela primeira vez, no facto de Jesus nos ensinar a ver Deus como Pai, espantando-me ao descobrir aí um sentido que sempre conhecera mas que me parecia agora inauditamente novo e de fulcral importância para a nossa vivência do cristianismo.

Para explicar o que se passou comigo, tenho de recordar uma antiga imagem de Deus, tão antiga como o Antigo Testamento, e que ainda hoje não está completamente erradicada. Que fique bem claro: nunca os grandes santos viram Deus como o vou descrever de seguida, mas infelizmente a Igreja não é constituída apenas por grandes santos e por isso, ao longo dos séculos, muitas vezes os cristãos foram convidados a ver Deus como um ser infinitamente superior, ao pé do qual não valeríamos nada e que não precisaria de nós para nada.

Ter esta imagem de Deus só pode conduzir a dois desfechos, qualquer deles mau: ou a um sentimento interior de humilhação e revolta, que mais tarde ou mais cedo termina no ateísmo; ou a uma relação patológica com Deus, de tipo sadomasoquista.

Jesus vem evitar estas duas consequências perversas daquela imagem errada de Deus, ensinando-nos que Deus é Pai. A relação entre um pai e um filho, mesmo sendo uma relação de tipo “vertical”, por haver superioridade de uma das partes em relação à outra, não tem forçosamente de envolver algo de humilhante para o filho (e nunca envolveria, se todas as relações entre pais e filhos fossem saudáveis). Particularmente nos anos de mais tenra idade do filho – e talvez sejam esses os que devemos ter por modelo da relação entre Deus e o Homem – a dependência é máxima mas o carinho é também máximo.

Esta analogia pode apontar ainda outro aspeto. Se Deus quisesse que nos sentíssemos inúteis, que sentíssemos a nossa existência como uma mera esmola, então o seu amor não seria muito perfeito. Mas um pai pode precisar de um filho de mais que uma maneira, e não apenas como objeto aonde dirigir a sua necessidade de amar. Do mesmo modo, muitos de nós acreditamos na existência de um projeto em que Deus não precisa menos da colaboração do Homem do que o Homem precisa da colaboração de Deus.

Não nos humilhemos mais do que o necessário. A macabra imagem do “Deus-tirano” e do “homem-verme” já afastou do cristianismo demasiados seres humanos, além de que nenhuma palavra de Jesus Cristo a legitima.

19/1/2016



AS RELIGIÕES, O SENTIMENTO RELIGIOSO E O MATERIALISMO

Quem critica as religiões em abstrato devia ter atenção a um facto muito simples: uma coisa são as religiões como instituição, outra coisa é o sentimento religioso individual de cada ser humano. Este sentimento é das coisas mais genuínas que possuímos, e consiste simplesmente na ânsia com que perguntamos quem somos e o que fazemos aqui. O mais materialista dos filósofos materialistas possui o sentimento religioso em grau tão elevado quanto qualquer outro ser humano. – Pois a que perguntas está ele a responder quando diz apaixonadamente que não somos mais do que matéria e que não há qualquer propósito na nossa existência?

28/11/2015

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UMA PARÁBOLA (QUE PODIA SER) DE KAFKA

Um dia, K. caiu num poço. Bateu com a cabeça e esqueceu quem era e donde vinha, mas foi-se habituando a viver no fundo do poço, até que, passado muito tempo, lhe apareceu um ser maravilhoso, que lhe veio dizer quem ele era, donde vinha e como deveria fazer para sair do poço e voltar à sua antiga existência. Feito isto, o ser maravilhoso voltou para o lugar de onde viera. Mas a pancada na cabeça não tinha apenas tornado K. amnésico; tinha-lhe também diminuído muito o entendimento. Por isso, K. não percebeu muito bem as explicações que lhe tinham sido dadas. Mesmo assim, ainda fez alguns progressos nas suas tentativas para deixar o poço. Mas à medida que o tempo passava, ia-se lembrando pior do pouco que tinha percebido, e de cada vez tinha mais dificuldade em perceber os apontamentos que tinha tomado, sempre que os voltava a consultar.

K. continua no fundo do poço. Já nem tem bem a certeza de ter alguma vez recebido a visita de quem quer que fosse. Mas o pior de tudo é que já está tão habituado ao poço que chega a tremer de medo com a ideia de alguém se lembrar alguma vez de o vir de novo salvar.

27/11/2015

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DA QUEDA À SALVAÇÃO

A História é um acidente da Eternidade e todos reconhecemos que está para além da capacidade intelectual do ser humano perceber como é que a Eternidade pode sofrer acidentes, coisa que parece contradizer os próprios atributos que lhe conferimos.

Mas independentemente de percebermos a queda, parece evidente que o esforço de reparação tem de ser levado a cabo pelos próprios fragmentos da Eternidade (nós), dentro do poço em que caímos (o Tempo).

O máximo que a Eternidade pôde fazer para nos ajudar (sim, porque ela, sendo eterna, continua a existir intacta, a par dos fragmentos em que se separou) foi enviar um mensageiro, Jesus Cristo, para nos dizer como deve ser levada a cabo essa reparação.

26/11/2015


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DO GÊNESIS AO APOCALIPSE


O que é realmente importante na Bíblia: só o princípio e o fim? Poderia parecer, de facto, que a lenda de Adão e Eva explica como o Tempo se separou da Eternidade, enquanto o Apocalipse explica como voltará o Tempo a ser absorvido pela Eternidade, de modo que tudo o que está “no meio” seriam apenas acidentes, os acidentes próprios do Tempo. Mas dá-se o caso de a Eternidade participar ativamente em todos esses acidentes do Tempo, com vista ao desenlace final. Daí a importância de TODA a Bíblia, com especialíssimo destaque para os Evangelhos, que narram a descida da própria Eternidade ao seio do Tempo.

4/11/2015


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PORQUE ESTÁ A FALHAR O CRISTIANISMO?
ou
POR UMA FILOSOFIA DO QUASE


O cristianismo está a perder vitalidade de uma maneira evidente para todos. O que tinha surgido há vinte séculos como uma força libertadora de intensidade nunca vista, foi perdendo ímpeto até que hoje, pelo menos na Europa, parece à beira dos últimos estertores. Como explicar este fenómeno?

Decidi levar a cabo uma análise de um esquematismo extremo, para evitar ter de chamar uma equipa de historiadores, filósofos e teólogos, os quais, de resto, iriam obscurecer por completo a ideia simples que quero transmitir: quando eles tivessem acabado o seu trabalho, teriam conseguido montar uma rede quase inextrincável de nomes, factos e ideias, estendendo-se no tempo ao longo de cerca de dois mil anos, ocupando geograficamente todo o globo terrestre, e envolvendo milhares de pessoas, ou talvez milhões, ou talvez milhares de milhões.

Eu pretendo fazer uma coisa ao mesmo tempo muito mais modesta e muito mais ambiciosa: identificar uma única direção − dominante e intemporal − no meio do caótico emaranhado do fluxo histórico das correntes de ideias, subcorrentes, subsubcorrentes, etc.

Não quero ser exato. Quero precisamente o oposto da precisão. Claramente anti cartesiano, fujo das ideias claras e distintas. Afasto-me imaginariamente para um ponto suficientemente distante do planeta Terra. Deixo de ver pormenores, vejo apenas manchas coloridas, com gradações contínuas de cor e portanto sem fronteiras a separá-las.

Recuando ao tempo de Jesus, localizo mesmo assim neste mapa de cores mal demarcadas, duas manchas relativamente bem definidas, dois polos em redor dos quais de organizam todas as linhas de força:

OCIDENTE------ORIENTE

Há um fervilhar de ideias em torno de cada um destes polos. Tanto um como outro nascem e crescem num caldo de cultura de ideias míticas/religiosas, diferentes num e noutro caso, ambas irrelevantes para os presentes propósitos. O polo ocidental é uma mancha que alastra a partir da Grécia por volta de meados do último milénio antes da era de Cristo. Estamos habituados a chamar “milagre grego” ao que aí aconteceu nessa altura. Conheço muito pior o polo oriental. Para ter dele uma representação histórico-geográfica, situo a sua origem na Índia, nos inícios do mesmo I milénio a.C., quando os Upanishad deixam o solo firme da religião védica e se embrenham também pelos desfiladeiros da filosofia. (1)

Para não faltar ao prometido esquematismo, aqui estão resumidamente as características destes dois polos:

OCIDENTE:
RAZÃO
ATENÇÃO AO VISÍVEL
ou seja
ATENÇÃO AO EXTERIOR
ou seja
ATENÇÃO À MATÉRIA

ORIENTE:
INTUIÇÃO
ATENÇÃO AO INVISÍVEL
ou seja
ATENÇÃO AO INTERIOR
ou seja
ATENÇÃO AO ESPÍRITO

Deus encarna em Jesus Cristo num ponto geográfico e num instante histórico que são ambos ponto de encontro e confluência dos eflúvios orientais e ocidentais. A minha tese é a de que isto não aconteceu por acaso e que a Redenção deveria envolver a síntese destas duas grandes tendências. E os primeiros tempos do cristianismo, de facto, pareciam ir nessa direção.

Pareciam ir nessa direção, mas a síntese ainda não estava feita, e nunca chegou a ser feita, porque houve cristãos, homens de carne e osso, tão falíveis como quaisquer outros, que decidiram, em vez de procurar a quase impossível união dos dois polos, suprimir pura e simplesmente um deles, o polo oriental.

Desçamos um pouco do abstrato ao concreto: os factos a que me refiro no parágrafo anterior consistem na condenação das correntes gnósticas como heréticas e na concomitante declaração como apócrifos de vários dos Evangelhos que nessa altura circulavam. O gnosticismo era a versão oriental do cristianismo, com a superlativação do espírito e a liminar recusa da matéria, vista como única fonte de todos os males e como incapaz de produzir algo de bom.

Na lógica clássica, a negação da negação é equivalente à afirmação. Poder-se-ia então pensar que, nesta luta interna do cristianismo, a corrente vencedora, ao recusar a recusa da matéria, tomava o partido da matéria. No entanto, a lógica real é mais subtil do que a lógica formal. Assim, ao longo dos subsequentes séculos, o cristianismo teve sempre entre os seus mais dignos representantes, homens e mulheres de enorme espiritualidade.

Mas se isto é verdade para todos os santos que deixaram o seu nome na história, e também para os muitos mais que permanecerão para sempre desconhecidos, não o é contudo para a maioria dos fiéis. Recusando a síntese quase impossível entre a recusa da matéria e a aceitação da matéria, e preferindo recusar a recusa da matéria, o cristianismo falhou em dar o salto em direção à Redenção, e, sem dar por isso, abriu as portas ao materialismo. As consequências estão agora à nossa vista.

9/10/2015

Fernando Henrique de Passos

(1) Deixo aqui claro que vejo uma antinomia (quase) irreconciliável entre Religião e Filosofia: a primeira oferece a consolação da adoração; a segunda, a inquietação da busca. Talvez seja apenas mais uma instância da dicotomia feminino/masculino: a mulher procura amparo, o homem procura aventura. (Isto no tempo dos trogloditas, claro; hoje todos nós sabemos que já não é assim.) Na Índia, a tensão da Filosofia contaminou a paz da Religião; penso que o gnosticismo cristão herdou essa característica através dos seus “genes” orientais. A questão pode pôr-se assim: o fim último de um mistério é que o adorem ou que o desvendem? Talvez a feição mais espiritual da filosofia oriental tenha facilitado a sua aproximação à religião. Mas também é verdade que há aproximações desse tipo no cristianismo, e não só aproximações ao platonismo – muito naturais por este ser a principal exceção espiritual ao materialismo da filosofia grega – mas ao próprio aristotelismo, como é bem sabido. Mas esta observação só confirma o que já estava implícito desde o princípio deste texto: quanto mais queremos olhar a história de perto, tanto mais confusa e “misturada” ela se nos apresenta.


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O S.O.S. DE KAFKA


Um dia, um homem chamado Gregor Samsa acorda transformado numa gigantesca barata. No entanto, esta metamorfose não lhe suscita a mais leve interrogação. Não assoma aos seus lábios (?) um único “porquê?”. Apenas se preocupa com as coisas do quotidiano, como ir chegar atrasado ao emprego e ter de ouvir o chefe a ralhar com ele.

Gregor Samsa não vos lembra alguém?

A mim, Gregor Samsa lembra-me todos aqueles de nós que vivemos como se não fosse importante saber quem somos e o que fazemos aqui.

16/7/2015

Fernando Henrique de Passos


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DEUS JOGA ÀS ESCONDIDAS?

Há ateus que dizem não conseguir perceber este Deus que “joga às escondidas” com o ser humano, ora revelando-se, ora ocultando-se, e nunca se revelando de forma suficientemente clara, quando o faz. Percebo esta queixa, pois sinto muitas vezes o mesmo. Mas recentemente interroguei-me: é Deus que se esconde de mim, ou sou eu que me escondo dele?

A história de Adão e Eva não é para ser levada à letra, já todos nós sabemos. Mesmo assim, talvez seja ‒ de muito longe ‒ o episódio mais importante do Antigo Testamento, aquele que encerra a explicação que todos nós procuramos para o mistério da existência humana, embora o faça de maneira alegórica, cabendo à nossa imaginação adivinhar o que está a ser representado nessa alegoria. Para o caso presente, interessa-me apenas reter um ponto: a vergonha dos dois após terem sido descobertos.

Será a minha congénita vergonha-não-sei-de-quê ‒ a vergonha com que todas as crianças nascem, e que alguns de nós nunca perdemos completamente, a vergonha que faz com que me esconda constantemente dentro de mim mesmo ‒ será essa vergonha a responsável por este sentimento de que Deus joga às escondidas comigo? Será que, do meu esconderijo, tão fundo me enterrei que só vejo a realidade através de camadas quase opacas de medos e sentimentos de culpa?

Talvez só tenha de me envergonhar desse esconderijo, onde me cerquei de lentes que torcem a realidade, amplificando coisas insignificantes e desvanecendo o que tem significado. Talvez Deus se me ofereça, desde sempre, num gesto largo, rasgado e inequívoco, do qual eu não me apercebo, no entanto, senão como um sinal velado, que atribuo mais à minha vontade de crer do que à realidade dos factos.

10/6/2015

Fernando Henrique de Passos

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O ANDAIME E O EDIFÍCIO

É importante termos uma filosofia de vida, desde que não lhe dispensemos demasiada… importância. Limitemos a filosofia de vida ao papel de andaime, e reservemos o papel principal para o edifício que esse andaime vai ajudando a erguer do chão ‒ a própria vida.

No fim, talvez o sentido que buscávamos ansiosamente na filosofia ‒ o andaime ‒ o venhamos a encontrar no edifício ‒ a vida.

8/6/2015

Fernando Henrique de Passos


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O AMOR

Se é verdade que Einstein descobriu existirem reservas quase inesgotáveis de energia adormecidas no seio da matéria, e se isso foi importante, é muito mais verdade, e muito mais importante, ter-nos Jesus ensinado que existem reservas inesgotáveis de amor adormecidas no interior da alma de cada um de nós.

Os físicos aplicados aprenderam a extrair da matéria essa energia descoberta por Einstein, por meio de reatores nucleares.

Do mesmo modo, o papel de qualquer padre, de qualquer psiquiatra, de quem quer que seja que deseje ajudar os outros a serem realmente felizes, deveria consistir simplesmente em ensinar às pessoas como procederem para libertarem essas reservas ilimitadas de amor que há dentro de si.

(Ah, é verdade: a descoberta de Einstein também permitiu aos físicos aplicados inventarem a bomba atómica. Com o amor não há semelhante perigo…)

29/5/2015

Fernando Henrique de Passos





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O TEMPO E A ETERNIDADE


Alguém consegue imaginar um mundo onde reinasse uma total ausência de conflitos?

Não me refiro apenas a guerras e atentados terroristas. Refiro-me a qualquer tipo de conflitos ou atritos, como o conflito no restaurante porque o bife veio muito passado e nós tínhamos pedido mal passado, mas o empregado diz que eu pedi bem passado, “não pedi nada, o senhor é que percebeu mal”, “o senhor é que se deve ter enganado e disse bem passado quando estava a pensar em mal passado”, etc.

Refiro-me a uma espécie de “Paraíso Hippie”, onde só houvesse amor, paz, sorrisos, flores e borboletas. Dito assim, é tão doce que até enjoa, não é verdade? Precisamos de atritos na vida como precisamos de sal e pimenta na comida. Nem o mais guloso dos gulosos concebe a ideia de passar o resto dos seus dias a comer apenas bolas de Berlim, mel e mousse de chocolate. Temos de discutir por causa de qualquer coisa, nem que seja o futebol, ou a falta de gosto da Fulana para se vestir. Quer dizer, então, que não fomos feitos para o Paraíso?

De um ponto de vista ligeiramente diferente, pensemos agora na nossa atracção instintiva por notícias, independentemente de serem boas ou más. Atrevo-me a dizer que preferimos uma notícia má à ausência de ocorrências assinaláveis. (Desde que essa notícia má não diga respeito à nossa própria pessoa, obviamente…) Por que razão necessitamos tanto que haja sempre coisas a acontecer? Não fomos feitos para a Eternidade?

Não sejamos tão pessimistas. Talvez sejamos feitos para o Paraíso. Talvez sejamos feitos para a Eternidade. Talvez a nossa necessidade de conflitos e a nossa necessidade de notícias consistam simplesmente num ardil do Tempo, no sentido de perpetuar a sua existência.

Estou a supor qualquer coisa de bizarro e insólito, mas nada que não tenha já passado pela cabeça de muita gente, se não no Ocidente, pelo menos noutras paragens mais distantes. Estou a supor que o Tempo depende desesperadamente de nós, pois somos nós que o criamos. Estou a supor que as nossas volições é que lhe dão origem: os nossos medos, os nossos desejos, e até a infantil necessidade de que pura e simplesmente aconteçam coisas.

Talvez, afinal, sejamos mesmo feitos para a Eternidade e para o Paraíso. Julgamos não o ser apenas por termos caído nas malhas de uma espécie de “toxicodependência”: o Tempo conseguiu que ficássemos viciados nele…

3/6/2015


Fernando Henrique de Passos


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O SEGREDO DE JESUS

Há coisas que não se dizem com palavras. Aos que tiveram a bênção de O conhecer, Jesus falava com a Sua própria presença. E isso era tudo, e era o infinito e a eternidade num só olhar, num só gesto, num só sorriso. 

Mas a nós ‒ ai de nós! ‒ não nos chegou a presença de Jesus, mas apenas uns fragmentos dispersos e por vezes contraditórios das Suas palavras, que foram o menos importante da Sua passagem pela Terra, porque os mistérios que Ele nos veio revelar não cabem dentro de palavra alguma.

7/5/2015

Fernando Henrique de Passos



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ABRIR A PORTA A DEUS

«Vinde, benditos de Meu Pai, recebei em herança o Reino
que vos está preparado desde a criação do mundo»
Mt 25, 34

«Deus está lá fora. À minha porta. Eu estou cá dentro. E digo que Deus não tenta falar comigo. Que Deus não me dá o mais ínfimo sinal. Que Deus provavelmente nem existe. Mas, se olhar bem para o fundo de mim mesmo, vejo. Vejo que sei que Deus está lá fora. À minha porta. E vejo ainda mais. Vejo que não lhe abro a porta por temer ter de renunciar a muitas coisas. (…) Mas olhando ainda mais fundo dentro de mim mesmo (…) vejo que todas essas coisas, a que tanto apego tenho, [nada são] ao pé dos tesouros não sonhados que Deus tem para me oferecer.»

Escrevi isto há mais de cinco anos. Entretanto, acabei por deixar entrar Deus. (Ele foi muito persistente. Mesmo correndo o risco de parecer blasfemo, tenho de confessar que já não O podia ouvir a bater à porta!) Desde então, a minha vida começou a mudar muito, e para melhor. Por isso, gostava de conseguir ajudar outras pessoas a dar o mesmo passo que eu dei.

Para começar, a melhor ajuda que posso dar é pedir que desliguem a ideia de Deus de todas as palavras, símbolos e conceitos a que ela está geralmente associada na cultura ocidental. Qualquer descrente ocidental que me esteja a ler neste momento, se rejeita Deus, rejeita certamente todo o “folclore” que entre nós o costuma acompanhar, e não é caminhando por um átrio repleto de imagens que abomina que se poderá aproximar dele.

Encorajo então o ateu ou agnóstico que passa os olhos por estas linhas a pensar em Deus de uma forma muito mais abstracta, esquecendo até, se necessário, a própria palavra “Deus”, e imaginando apenas, no seu lugar, uma sabedoria muito antiga, escondida no interior de todas as coisas, mas escondida sobretudo nas profundezas de cada ser humano, talvez nas regiões recônditas do inconsciente, onde a Psicologia já chegou, ou em territórios ainda mais ocultos, que a Ciência terá de cartografar um dia.

Uma sabedoria muito antiga, sim, mas sobretudo uma sabedoria boa, que só nos deseja tudo aquilo que todos nós sempre quisemos alcançar, tudo o que resumimos na palavra “Felicidade”, embora tantas vezes confundamos felicidade com coisas que só nos tornam infelizes, a nós próprios e aos outros.

Quando conseguimos começar a ouvir o murmúrio permanente dessa sabedoria universal, à qual, vá-se lá saber porquê, os ouvidos das pessoas se vêm tornando cada vez mais surdos, as primeiras lições que deciframos ensinam-nos, por exemplo, que somos tanto mais felizes quanto menos desejamos sê-lo, porque esta sabedoria parece não fazer muito caso do senso comum, e chega a desafiar os dois pilares fundamentais da lógica tradicional, o Princípio do Terceiro Excluído (entre SIM e NÃO não há outra alternativa) e o Princípio da Não Contradição (não pode ter-se ao mesmo tempo SIM e NÃO).

Mas isso são assuntos de que poderão falar outras pessoas, pessoas que conheçam Deus muito melhor do que eu, como por exemplo os teólogos. Ah, voltei a falar de Deus, em vez de falar de Sabedoria! Mas não faz mal: no fim perceber-se-á que mesmo as coisas mais ridículas que vinham sempre agarradas à ideia de Deus, mesmo essas coisas, passam a ter todo o sentido quando iluminadas pela luz da “sabedoria ancestral do universo”.

O que não quer dizer que tudo sobreviva da ideia tradicional de Deus no ocidente. Não sobreviverá certamente um Deus que fica ofendido por não reconhecermos a sua ajuda, ao preferirmos atribuí-la a uma vaga “sabedoria”. Deus não é esse ser mesquinho que quer ser louvado, adorado e glorificado, esse Deus que nós, homens, construímos à imagem e semelhança dos nossos egos. Ele quer desesperadamente ajudar-nos porque nos ama, não porque queira receber louvores.

“Desesperadamente”? Pode aplicar-se esta palavra a Deus? Sim, em certo sentido, porque Deus também não é um ser omnipotente, como nós o idealizámos, necessitando, pelo contrário, que colaboremos com ele na nossa própria salvação.

Mas, acima de tudo, Deus não é um ser ─ Deus é o Ser, e o único verdadeiro mistério que devia preocupar os teólogos devia ser o mistério de o Ser único aparecer pulverizado em tantos biliões de pequenos seres: nós, seres humanos, e toda a restante “Criação”. (Efeito perverso do Tempo, avento eu, que funciona como o prisma de Newton, decompondo a unidade da luz branca em infinitos e diversos cambiantes. A unidade do Ser só será então reencontrada da perspectiva da Eternidade.)

Por isso, quando Deus nos ajuda, o que estaria realmente a acontecer seria “Deus a ajudar-se a si próprio”, ou “nós a ajudarmo-nos a nós próprios”, se o pudéssemos exprimir. Mas o que está realmente a acontecer é qualquer coisa completamente inexprimível pelas nossas palavras, pelos nossos conceitos, pela nossa lógica. Apenas isto é certo: não há ninguém à espera de ouvir “muito obrigado”…

20/11/2014

Fernando Henrique de Passos

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DO DEUS DE EINSTEIN AO DEUS DOS CRISTÃOS

ao meu Pai, que hoje faria 91 anos, e que me falava muito de Deus,
mas também me falava de Einstein, de Newton e de Arquimedes

Durante dezenas de anos, incluindo um longo período de agnosticismo, sempre achei absurda a forma como Einstein falava de Deus, parecendo identificá-lo com a harmonia das leis do universo, ou com qualquer coisa de ainda mais vago e abstracto. Foi o livro Einstein and Religion, de Max Jammer, que me fez perceber melhor a sua atitude face à religião. (Obrigado ao Paulo Martel pelo oportuno presente!)

Se tentarmos isolar a essência do sentimento religioso, talvez encontremos isto: a consciência de que são os nossos medozinhos ridículos e os nossos desejozinhos ridículos que nos tornam infelizes, e de que eles não são nada ao pé de uma certa realidade gigantesca, esmagadora, abrasadora, cuja existência pressentimos, mesmo que às vezes não a consigamos definir, identificar, localizar. Era neste sentido que Einstein era religioso.

Einstein não era religioso no sentido de acreditar em certos factos espácio-temporais como, por exemplo, “Deus entregou as tábuas da lei a Moisés no Monte Sinai” ou “Jesus ressuscitou ao terceiro dia”. Ser religioso, no sentido lato da palavra, é muito mais e muito menos do que isso. Há pessoas que acreditam nesses factos e que levam vidas tão miseráveis como qualquer materialista. Essas pessoas serão mais ou menos cristãs do que Einstein o foi? A que distância se encontrava Einstein de ser cristão?

Deixemos que seja Deus a julgar e abstenhamo-nos de tentar responder. Mas não nos abstenhamos de perguntar: “em que é que a Fé em Nosso Senhor Jesus Cristo muda a minha vida?” Ser religioso é ver a realidade de uma forma diferente, mas não é só isso ─ é deixar também que essa forma de ver a realidade transforme a nossa forma de a viver. O que também pode ser dito de outro modo: se a nossa forma de ver a realidade não traz automaticamente novidade à nossa vida, então é porque não estamos a ver a realidade de uma maneira realmente diferente, apenas julgamos que o fazemos.

Deus entregou as tábuas da lei a Moisés no Monte Sinai! Jesus ressuscitou ao terceiro dia! Estes factos não são só importantes; estes factos são decisivos. Mas não serão decisivos, nem sequer importantes, se eu ficar pela sua casca espácio-temporal e me esquecer do que eles procuram revelar acerca daquela realidade assombrosa da qual por vezes se tornam uma manifestação quase insignificante (dependendo do modo como são olhados e vividos), sobretudo se já passaram 2000 ou 3000 anos sobre a sua ocorrência e, pior, se as escassas dezenas de anos da minha própria vida, em vez de dedicadas a desenterrá-los das profundidades da História, ainda os vieram cobrir com as teias de aranha da rotina, com a qual o meu egoísmo tão sensatamente (do seu ponto de vista) me protege de desafios e sobressaltos.

Sobressaltos? Sim: a vida, a morte e a Ressurreição de Jesus Cristo devem ter sido para os seus contemporâneos como a explosão de uma supernova. E se, ao fim de vinte séculos, só restam dessa explosão as brasas quase extintas do rescaldo de um incêndio, há mesmo assim a possibilidade, soprando as brasas, de atear chamas que ameacem devorar todo o conforto em que a minha autocomplacência deixou que eu me instalasse.

8/11/2014

Fernando Henrique de Passos


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A MORAL DA HISTÓRIA

1 – Como caçar um macaco

Ponha um amendoim dentro de uma jaula que tenha as grades suficientemente apertadas para que a mão do macaco passe à justa entre elas. Quando o macaco vir o amendoim, irá meter a mão pelas grades para o agarrar, mas quando quiser tirar a mão outra vez de dentro da jaula, o punho fechado não conseguirá passar e o macaco ficará preso. Por estranho que pareça, o macaco não perceberá que se largar o amendoim ficará de novo livre.

2 – O Tempo e a Eternidade

Penso que quase todos nós imaginamos a vida eterna como qualquer coisa que vem depois da vida terrena, tal como o emprego vem depois dos estudos, ou como a reforma vem depois dos anos de trabalho. No entanto, esta forma de ver a eternidade coloca-a na categoria das coisas temporais, o que não faz muito sentido.

É verdade que a nossa mente está feita de tal modo que não conseguimos deixar de projectar a ideia de tempo em tudo aquilo que imaginamos ou consideramos mas, mesmo assim, auxiliados pela nossa capacidade de abstracção, devemos fazer um esforço para contrariar esta tendência, e podemos até contornar a dificuldade combatendo o tempo com as suas próprias armas.

Recorramos assim ao conceito temporal de simultaneidade, para dizer que a eternidade não é anterior nem posterior à existência terrena, antes lhe sendo simultânea. (Do mesmo modo, a jaula e a selva onde se pode ser livre e feliz são duas possibilidades que se oferecem ao macaco em simultâneo, a cada instante.)

Digamos então que tempo e eternidade são apenas duas maneiras diferentes de ver a mesma realidade, ou, talvez melhor, duas maneiras diferentes de a viver. Jesus Cristo veio explicar-nos isto e dar-nos o segredo que permite optar pela maneira certa de viver a realidade, embora a acção permanente do Espírito Santo, desde o princípio dos tempos, já tivesse levado gente sábia de diversas culturas a intuições parciais desta verdade.

A verdade é que é o nosso egoísmo que nos amarra ao tempo, o nosso egoísmo traduzido na obsessão em nos sentirmos bem, traduzido na multidão de medos e desejos mesquinhos pelos quais nos deixamos governar a cada instante. E as leis da moral, na sua origem, propunham-se apenas serenar este revolto mar interior que nos precipita no Tempo, que é o Tempo, mas que, uma vez serenado, se transforma no infinito mar da própria Eternidade.

3 – Moral da história

As leis morais não são o capricho de um Deus sádico, que se compraz em proibir-nos as coisas que nos dão prazer. Pelo contrário, as leis morais são simplesmente um “mapa do tesouro”, um caminho secreto para o Bem Supremo, uma pista que conduz do Tempo à Eternidade. Por isso, se alguém nos vier dizer para não nos preocuparmos mais com as velhas leis da moral, temos tanta razão para agradecer como o macaco a quem foram dizer que não largasse o amendoim.

22/10/2014

Fernando Henrique de Passos


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CARTA ABERTA AO PAPA FRANCISCO

Papa Francisco,

poderia abordar a questão da falta de rigor da tua expressão “Deus dos filósofos”. Poderia dizer que não existe tal coisa, mas apenas, na melhor das hipóteses, um Deus para cada filósofo que falou sobre Deus. Mas percebo o que querias dizer. Muitas vezes o que queremos dizer não coincide exactamente com a forma das palavras que usamos para dizer o que queremos. Além do mais, não foi isso o que me perturbou. O que me perturbou foi tu dizeres que não gostas dele, desse tal “Deus dos filósofos”. E isso perturbou-me porque me parece que, num mundo tão desesperadamente materialista como é o mundo actual, não devemos “fechar ao trânsito” uma única via que possa conduzir a Deus, por mais esburacada que seja, ou mal iluminada, ou sinuosa, ou até mal frequentada.

A Razão sequestrou o Coração de muitos irmãos nossos, e não os deixa olhar e escutar as imagens, o vocabulário e os símbolos da tradição cristã sem um sentimento de troça e de repulsa. É preciso seduzir de novo a Razão, para que ela volte a permitir aos seus Corações o acesso à Palavra do Senhor. E só se pode seduzir a Razão (e, mesmo assim, muito a custo) com o Deus abstracto dos filósofos e, se necessário, até com a linguagem dos cientistas.

(A propósito, acho que devias obrigar todos os estudantes de teologia a terem cadeiras de física teórica e de matemática pura. Não tanto pelos factos específicos que iam aprender, mas porque o contacto com certo tipo de relações entre certo tipo de entidades abstractas ajuda a perceber que o absurdo pode ser compatível com a lógica e pode estimular a imaginação no sentido de encontrar novas soluções para velhos problemas. Claro que os mistérios serão sempre mistérios, pelo menos nesta nossa forma transitória de existência, mas algumas contradições aparentes poderiam passar a ser muito menos chocantes.)

Papa Francisco, por favor, muitos irmãos nossos talvez precisem do Deus difuso dos filósofos para chegar a Cristo. Eu sei que isto é exactamente o contrário do que devia ser, mas desta vez o Demónio deu um nó muito bem dado!

19/6/2014

Fernando Henrique de Passos


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O MEDO INTELIGENTE

O fogo cerca a tua casa por todos os lados. E aproxima-se. Tens medo. Então foges para dentro de casa, fechas as janelas, pões as pantufas, acendes a televisão e sentas-te a olhar para ela. Sabes que o fogo se aproxima cada vez mais, de todos os lados, e que vai engolir a casa, contigo lá dentro, mas tentas não pensar nisso. E quase consegues. Mas tentas com mais força. E há tantas coisas com que te podes distrair, e tantas coisas que te dão prazer, e tantos comprimidos que te dão calma, dentro de casa, que acabas mesmo por esquecer que o fogo a vai engolir, contigo lá dentro.

O teu medo do fogo não foi muito inteligente: o máximo que conseguiu foi que te esquecesses daquilo que te mete medo. Se o teu medo fosse inteligente, far-te-ia sair de casa, correr em direcção ao fogo, e lutar para o atravessar, mesmo que isso te causasse alguma dor. Valeria a pena, porque, para lá da barreira das chamas furiosas, haveria terra a salvo, e erva verde, e paz.

10/6/2014

Fernando Henrique de Passos


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CRISTO E PLATÃO

Ao longo da história, já várias filosofias, tanto a oriente como a ocidente, julgaram perceber que existem duas realidades: a “autêntica”, que é a das ideias, ou do espírito; e uma sua cópia imperfeita, que é o mundo da matéria, o mundo do espaço-tempo. Não parece no entanto que esteja cabalmente compreendida a razão de ser desta duplicação. Porquê duas realidades? Qual a verdadeira natureza da relação entre ambas?

Quando Deus decidiu assumir figura humana para se nos dirigir directamente, não fez parte dos Seus planos tirar-nos esta dúvida. Talvez por, no seio da cultura onde Ele encarnou, essa dúvida já estar resolvida pelo mito da Queda. Mas a história de Adão e Eva, passados 4 ou 5 mil anos desde a sua criação, já não nos pode satisfazer.

Conclusão: Precisamos de novos Platões!

(Ou de uma nova vinda de Jesus, mas isso seria pedir muito…)

30/5/2014

Fernando Henrique de Passos


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COSMOGONIA MODERNA

No princípio há Deus e o Diabo. No princípio o Diabo lança sobre Deus a membrana do espaço-tempo para o aprisionar. No princípio Deus tenta libertar-se da membrana e irrompe através dela em múltiplos pontos, mas não a consegue furar em nenhum desses pontos.

(O Universo que conhecemos é a membrana do espaço-tempo com as múltiplas protuberâncias provocadas pelo esforço de Deus para se libertar. Algumas dessas protuberâncias, uns biliões, são os seres humanos. Os actuais, o que já existiram, e os que ainda vão existir. O Diabo procura fazer crer aos seres humanos que cada um é independente dos outros e incute-lhes desejos egoístas que acabam por os virar uns contra os outros. O que lhe convém, porque só a união de todas as protuberâncias permitiria a Deus furar a membrana que o aprisiona.)

No princípio há um rasgão numa dada zona da membrana. No princípio Deus sente-se rico. Muito mais rico do que se não houvesse aqueles biliões de seres humanos e todas as demais protuberâncias. E cada ser humano, dos muitos biliões de seres humanos, concorda que é verdade.

16/5/2014

Fernando Henrique de Passos


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23:61

(carta aberta aos defensores da adopção de crianças por casais homossexuais)

Desde tempo ancestrais, o ser humano sentiu a necessidade de se imaginar como parte de um cosmos hierarquizado. Esse cosmos não tinha nada a ver com o “universo” da ciência actual. Era um mundo feito de coisas e lugares, e em que cada coisa tinha o seu lugar próprio, porque as coisas não eram todas iguais e os lugares não eram todos iguais. Alguns de nós ainda pensamos assim. É uma visão do mundo. É a nossa visão do mundo. Vocês chamam-lhe preconceito. Mas vocês também têm a vossa própria visão do mundo. Uma visão do mundo não é um preconceito. (Desculpem-me tratá-los por “vocês”, mas o “vós” é ainda mais arcaico do que a minha visão do mundo.)

A vossa visão do mundo – e peço desculpa se vos estou a interpretar mal – consiste essencialmente no oposto da nossa visão do mundo. Ou seja: é tudo igual, é tudo indiferente, deixem toda a gente fazer o que quiser porque é tudo a mesma coisa. Repito: não sei se vocês subscreveriam esta minha visão da vossa visão do mundo. A nós outros, pelo menos, é assim que nos soa.

Eu acho que compreendo donde é que vem esta vossa maneira de pensar. Tudo começou com Galileu, isto é, tudo começou quando começou a ciência moderna. (Sei que escolhi um exemplo péssimo para a minha causa, porque Galileu foi condenado pela Igreja, e por pouco não era queimado vivo. Mas eu não afirmo que todos os que têm a minha visão do mundo são santos. Alguns são mesmo demónios.) A ciência moderna concentra-se exclusivamente nas coisas que habitam o espaço-tempo. E, a esse nível, a ideia de cosmos hierarquizado desmorona-se, de facto. Em certo sentido, tudo é igual, tudo é indiferente. Vejamos a questão da localização da Terra, por exemplo, que foi por onde tudo começou. Galileu descobriu que a Terra não está no centro do mundo. Ocupa uma posição qualquer do sistema solar, uma posição sem qualquer característica especial. Isto foi o que Galileu descobriu. Mas as coisas não ficaram por aqui. Talvez o sistema solar tivesse alguma posição privilegiada. Não. O sistema solar ocupa um ponto qualquer da Via Láctea, que é uma galáxia qualquer, por sua vez situada num enxame qualquer de galáxias, ocupando um ponto qualquer desse enxame, e assim sucessivamente, até onde os nossos telescópios conseguirem ir alcançando. Neste universo que deixou de ser cosmos, não há hierarquias, não há lugares especiais para coisas especiais, não há uma ordem natural e preestabelecida. Em suma: não há sentido.

Estas foram as principais descobertas da ciência nos domínios do espaço sideral. Mas houve muitas outras descobertas, noutros domínios, e todas contribuíram para forjar a vossa visão do mundo. Afinal, tudo o que existe, incluindo nós próprios, é feito das mesmíssimas partículas elementares, que ocorrem apenas numa dúzia de variedades diferentes, e dentro de cada variedade cada partícula é exactamente igual a todas as outras partículas, e obedece às mesmíssimas leis, leis cegas que não distinguem nada do que nós distinguíamos no cosmos. E essas distinções é que faziam do cosmos um cosmos.

Mesmo assim, estas descobertas poriam em causa a ideia de cosmos hierarquizado? Não forçosamente. Essa ideia só começou verdadeiramente a ser posta em causa quando os cientistas decidiram que as únicas coisas que existem são as coisas que a ciência estuda – ou seja, os fenómenos que se podem descrever em termos espaço-temporais. Mas nós, os da visão do mundo antiga, continuamos a acreditar que nem tudo o que existe no mundo se pode descrever em termos espaço-temporais. Mais ainda, talvez o espaço-tempo seja só a superfície da realidade. (O próprio facto de eu ter agora usado a imagem de uma superfície, que é uma imagem espacial, mostra a dificuldade que temos em pensar noutros termos. Mas não devemos ser preguiçosos.) Talvez o grosso da realidade, o seu volume, seja a parte da realidade que confere sentido ao todo, a parte hierarquizada, o cosmos. (E este volume constituirá afinal “quase toda a realidade”, no sentido exacto em que a matemática usa a expressão “quase”.)

Então, resumindo, a ciência acabou por pôr em causa uma certa visão do mundo. Mas por que acho eu tão importante a maneira como vemos o mundo? – É que o facto de haver lugares diferentes para coisas diferentes tem consequências. Não é que cada coisa não se possa afastar um pouco do seu lugar natural – nada disto é milimétrico. Mas se muitas coisas se começarem a afastar muito dos seus lugares naturais, geram-se desequilíbrios no mundo, mesmo que não sejam logo perceptíveis, mesmo que tenham de decorrer muitos anos até os desequilíbrios se tornarem perceptíveis.

E já há muitos desequilíbrios visíveis. Há desequilíbrios muito materiais, muito palpáveis, como são os desequilíbrios ecológicos e climáticos. E há desequilíbrios de natureza mais espiritual, ou mental, se preferirem a palavra: é assombrosa a percentagem de pessoas que no Ocidente tomam ansiolíticos, antidepressivos, e outros psicofármacos ainda mais nocivos.

Não quero acabar sem dizer mais uma coisa, uma coisa importante: eu já pensei como vocês. Acho que sei o que me tinha acontecido. Um dia, chegada a meia-noite, o meu relógio, em vez de marcar 00:00, marcou 23:60; e depois 23:61; e assim sucessivamente. A partir daí o meu tempo e o meu espaço interiores, ou seja, o meu quadro de referências, tornaram-se lineares e homogéneos como o tempo e o espaço da física newtoniana. E um quadro de referências linear e homogéneo é um vazio, um deserto onde tudo é igual, tudo é indiferente. Depois substituí esse relógio com mostrador digital por um outro, também de cristal piezoeléctrico (o progresso tem imensas coisas boas), mas com um mostrador analógico, à antiga. Mas por causa do relógio com mostrador digital, ainda hoje não tenho de fazer qualquer esforço para perceber a vossa visão do mundo. Tentem perceber a nossa também – todos nos poderíamos entender muito melhor.

15 de Março de 2014

Fernando Henrique de Passos

P.S. Eu sei que acabei por não discutir especificamente a lei que foi ontem chumbada, mas que, todos nós sabemos, voltará a ser apresentada e votada na Assembleia da República, ou referendada, seja daqui a cinco, dez ou quinze anos. Mas a minha tese é a de que, se nos entendermos uns aos outros, se pudermos discutir esta e outras questões semelhantes num clima que não seja um clima de ódio, então o principal estará feito. Quanto ao resto, logo se verá.


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LIBERDADE E MORAL

Se largarmos uma pedra, ela cai. Não há nisto nada de odioso ou assustador. O caso das cargas eléctricas é mais interessante: uma carga eléctrica pode ser repelida ou atraída por outra carga eléctrica, dependendo dos sinais de ambas. Também isto não tem nada de odioso ou assustador. Há uma lei biológica muito parecida: os organismos vivos dotados de sistema nervoso tendem a ser atraídos pelas fontes de prazer e repelidos pelas fontes de sofrimento. Chamemos LPS a esta lei: Lei do Prazer e do Sofrimento. O ser humano é um organismo vivo com sistema nervoso: está portanto sujeito à LPS. Também não há nisto nada de odioso ou assustador. Mas causa um certo incómodo, não causa? Somos como uma pedra que cai? Como um pedacinho de papel atraído por um pente que foi friccionado? Como o pólo norte de um íman repelido pelo pólo norte de outro íman? Bem, claro que não somos. Ou melhor, somos, mas só enquanto crianças de tenra idade. Em adultos não somos assim, pois não? Ou somos um bocadinho assim? Sim, uns mais, outros menos, somos todos um bocadinho escravos da LPS. E isso é desagradável, de facto. Ninguém gosta de ser escravo de nada. Todos prezamos a liberdade, seja qual for a nossa ideologia, não é? Bem, há ideologias que não prezam nada a liberdade, mas nós também não gostamos muito delas, pois não? E depois, há outra coisa. Não vale a pena dar exemplos, qualquer pessoa conhece muitos exemplos, mas a verdade é que se nos deixarmos guiar exclusivamente pela LPS, acabamos muitas vezes por fazer o mal: a outros, ou a nós próprios. E assim chegamos ao problema do mal, e entramos no domínio do odioso e/ou assustador: porque há pessoas capazes de fazer muito mal a outras pessoas, ou a si próprias, em última análise apenas porque se deixaram guiar exclusivamente pela LPS. E aqui entra a moral. A minha tese é a de que, na sua génese, as leis da moral não são os ditames arbitrários de um Deus caprichoso, antes visam apenas libertar o ser humano da escravidão da LPS. E isso é bom por duas razões: 1) pelo simples facto abstracto de ser uma libertação; 2) por acabar com todas as consequências nefastas da obediência cega à LPS. Independentemente de permitir uma reavaliação do verdadeiro significado da moral tradicional, tão ridicularizada pelo pensamento moderno, este ponto de vista parece-me útil para o combate que (quase) todos travamos contra o mal: se pensarmos no mal como o resultado de algo semelhante à tendência de uma pedra para cair, isso já não nos desperta sentimentos nem de ódio nem de medo. O que é bom, porque do ódio e do medo só pode nascer mais mal. (Embora uma pedra que cai sem quaisquer entraves acabe por ir mergulhando em abismos sempre mais e mais profundos, o que também é um bocado assustador…)

20/2/2014

Fernando Henrique de Passos


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O FUTURO DO VERBO JUNTAR
(fragmento da teoria do Uno e dos fragmentos)

Os fragmentos do Uno gostam de se juntar. Nunca se chegam a juntar todos, claro, senão a História já tinha acabado, mas juntam-se, mesmo assim, umas vezes em grupos maiores, outras vezes em grupos mais pequenos.

Por exemplo, fazem umas reuniões a que chamam festas, em que se riem muito, sem se perceber muito bem porquê. Na realidade, estão apenas contentes por estarem juntos. Podem também juntar-se três ou quatro num café, a beber cervejas e a dizer disparates. E são capazes de estar ali horas a dizer disparates, só porque enquanto dizem disparates estão ao pé uns dos outros. Ou então, outro tipo de fragmentos, diferente do tipo de fragmentos que bebe cerveja, ficam muito tempo juntos a falar dos fragmentos mais pequenos. Às vezes, dois fragmentos, um de cada um destes dois tipos, aproximam-se muito, e por uns breves instantes parece-lhes que deixam de ser fragmentos e que voltam a ser o Uno. Quando os fragmentos já são velhos, saem de casa e vão até um jardim público, e sentam-se ao lado uns dos outros, só para se sentirem juntos, e já quase não precisam de dizer nada.

No tempo dos antigos, os fragmentos juntavam-se regularmente numas reuniões ainda maiores do que as festas, chamadas celebrações religiosas, e era como quando dois fragmentos dos dois tipos diferentes se aproximam muito por breves instantes: quase que se voltavam a sentir unidos num só. Mas agora isso acabou. Agora, o mais parecido que há com uma celebração religiosa, acontece quando os fragmentos se juntam às dezenas de milhar para verem duas dúzias de outros fragmentos a dar pontapés numa bola de couro. Mas, de certo modo, é quase o contrário de uma celebração religiosa, porque o que os junta ali, por estranho que pareça, é a mesmíssima força que, não se sabe quando, estilhaçou o Uno em todos estes fragmentos.

É uma força nunca deixou de estar presente, e por isso, ao longo dos séculos, os fragmentos tão depressa se queriam juntar como se queriam matar. Mas agora, ninguém sabe porquê, essa antiquíssima força que estilhaçou o Uno em tantos fragmentos, parece tornar-se cada vez mais poderosa.

E, qualquer dia, não restará em nenhum fragmento qualquer memória dos tempos em que só havia o Uno.

15/2/2014

Fernando Henrique de Passos


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A VIDA E A ALMA

A vida é pesada para todos. Há pequenos problemas, há grandes problemas, há a doença, e, claro está, no fim de tudo há a morte. Mais do que o peso da vida, pesa-nos o não percebermos porque é que tem de ser assim. Dantes, havia uns quantos de nós que sabiam o segredo, e que nos diziam: “Aguentem, resistam, não desistam – no fim vai valer a pena, porque a vossa alma é imortal.” E nós, pior ou melhor, lá íamos aguentando.

Mas depois começaram a aparecer outros, que nos diziam para não acreditarmos no segredo. E nós ouvimo-los. E deixámos de acreditar no segredo. E começámos a não aguentar o peso da vida. E nessa altura, os que nos tinham dito para não acreditarmos no segredo, começaram a dar-nos psicofármacos.

E agora toda a gente toma psicofármacos.

E agora as nossas almas estão a morrer devagarinho, estão a sufocar, já quase não respiram.

Ninguém faz nada?

NOTA: Somos todos células de um mesmo organismo. Não há células más a conspirar contra células boas. O que há é um veneno que se está a introduzir no organismo, o veneno do mal, e as células mais contaminadas, sem terem consciência disso, tendem a transmitir o veneno às células menos contaminadas.

19/2/2014

Fernando Henrique de Passos

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