Em Torno do Mistério (poesias religiosas de Fernando Henrique de Passos)

EM TORNO DO MISTÉRIO


por Fernando Henrique de Passos 

(poesia sacra não publicada em livro)




A PÁSCOA DE S. FRANCISCO DE ASSIS

Guiado pelo teu louco amor por tudo
Penetraste o núcleo de dor da existência
Passando a porta estreita proposta por Jesus
Que te esperava lá
No centro de tudo
No cume do mundo
No centro de ti
No fundo desse abismo assustador
Que enlouquece aqueles que preferem não ter de o recordar

Voltaste trazendo as Santas Chagas
A marca da Verdade sobre a carne
E a certeza de que o segredo desvairado
Que o Mestre dos Mestres ensinara
É bem mais certo que o mais sensato teorema:

Renunciar a tudo é ter o mundo inteiro

19/3/2015



MENINO DO NATAL

Menino do Natal ‒
Deus feito bater de coração,
Ternura em busca de um bafo de animal
Na neve da nossa tradição.

Menino do Natal ‒
Vindo de tão longe, vindo do Além,
Deus sem pompa, até sem enxoval,
Amor que se abandona num amor de mãe.

Menino do Natal ‒
Bem indefeso, esplendor da inocência,
Que vem propor aos seguidores do Mal
Que se deixem amar sem resistência.

21/12/2014



ENTRE SEXTA E DOMINGO

Conheço bem de mais a sexta-feira,
O fim da luz às três da tarde,
A sombra adunca da figueira
À espera do cobarde.

Conheço o cheiro do vinho derramado,
Misturado com fel e com suor,
E o horror do pão que foi pisado,
E o forno vazio e sem calor.

Conheço bem a hora em que as promessas
São um corpo descendo à sepultura,
A hora absurda em que regressas
Da vida que não foi senão futura.

Conheço bem de mais a sexta-feira,
Mas tanto a conheço que adivinho
Que traz em si a Vida e a Videira
Que voltará a dar-nos do Seu vinho.

12/4/2014



AS ORIGENS DO NATAL

“Que cansaço estar sempre aqui em cima –
Os seres humanos parecem-me formigas,
As formigas parecem-me micróbios,
E não tenho amigos nem amigas.

Gostava de poder brincar –
Às escondidas, por exemplo.
Ninguém me ia encontrar
Se me escondesse no meu Templo!

Gostava de não ser omnipotente –
Ter de pedir que me levassem pela mão
A ver o sol poente
No final de uma tarde de Verão.

Gostava sobretudo de ter mãe –
Que me passasse a mão pelos cabelos com meiguice,
Mas que me ralhasse também
Se eu fizesse uma tolice.

Gostava de não ser omnisciente –
Não conhecer o meu destino
E só saber que tinha de ir em frente.”

… E assim Deus se fez menino.

6/12/2013



MISTÉRIO PASCAL

O Uno, O Todo, O Inefável, Deus,
O sonho de todas as filosofias,
Morreu pendurado pelos braços,
E morto esteve durante três dias.

O Mundo quebrou-se em mil pedaços,
As aves do céu e os lírios do campo tremeram de medo,
E os espaços siderais tremeram de frio.

Mas ao terceiro dia, manhã cedo,
Madalena encontrou o túmulo vazio.

O túmulo vazio, o Mundo pleno,
Regurgitando de luz e de sinais,
Para tanto Amor quase pequeno.

Que procuramos mais?

12/3/2013



O SÁBIO E A LENDA

De dentro da noite, o sábio olhou a estrela,
Uma estrela igual a cada estrela,
Das muitas a brilhar dentro da noite.

Se um dia fosse dia em vez de noite,
Se um dia as leis fossem mais claras,
Tão claras como é clara a luz do dia…

Por certo, sabia muito o sábio,
Mas, quanto mais sabia,
Mais escura a noite se tornava.

Se um dia uma estrela se soltasse,
Se do céu caísse sobre a Terra,
Contra as leis que o sábio conhecia…

E o sábio tentou esquecer as leis
Que com tanto trabalho descobrira,
Mas as leis eram já parte do seu corpo.

Contudo, uma estrela igual às outras,
Que o sábio avistara nessa noite,
Sendo igual, parecia ser diferente…

Dentro da noite, o sábio recordou
A lenda muito antiga
Que um dia ouvira a sua mãe:

Uma estrela, uma gruta, um Salvador –
Um Deus Menino!
Se ao menos aquela estrela se movesse…

E a estrela começa a deslocar-se,
E o sábio segue-a,
Segue-a durante muitas noites.

E a estrela detém-se sobre a gruta,
A mesma gruta de há cem séculos,
A mesma da lenda muito antiga…

E a luz daquela estrela instaura o dia,
O dia que o sábio nunca vira,
Nem mesmo sabia imaginar.

E no centro do dia havia um Deus,
Um Deus Menino,
O Deus de que falava a velha lenda…

E a mãe do Menino olhava o sábio,
E ao sábio parecia a sua mãe,
A mesma a quem ouvira a louca lenda.

E o sábio chorou e, de joelhos,
Sob um dilúvio de luz abrasadora,
Pôde enfim esquecer todas as leis…

4/12/2012



DESCRENÇA E FÉ

“Não pode ser!”
Disse o Doutor.

Mas tinha sido:
Dos Céus a Graça
Tinha descido…

“Como é possível?!
Não faz sentido!
A paciente
Tem de estar mal!”
Mas Deus ajuda
Quem Lhe é leal…
“Isto viola
Tudo o que sei!”
No Outro Reino
É outra a Lei…
“Não faz sentido!
Não pode ser!
Aqui as coisas
Não são assim!”
Mas Jesus disse:
‒ Quem vem a Mim
Salvar-se-á…
“Não o conheço!
Não sei quem é!”
Mas Ele vela
Por quem tem Fé…
“Isso é crendice!
A Razão vence-a!
A Razão ri-se!”
Pobre Ciência,
Pobre Doutor,
De olhos fechados
A tanto Amor…
8/10/2012



TRÊS PASTORES PROJECTADOS NOS ESPAÇOS ABSTRACTOS

no dia 13 de Maio de 1917

Vós acedestes aos espaços que transgridem
As leis ordinárias da matéria;
Onde as ideias não referem substâncias,
Onde o fluir não tem fluente,
Onde as imagens não se casam com palavras,
Onde os sons não podem verberar,
Onde a luz se cristaliza nas pupilas.
Presenciastes a forma inominável,
A forma onde cabe o mundo inteiro.
Respirastes um ar não feito de moléculas,
Sentistes calor sem vibração dos átomos.
Tudo era ternura, tudo era presença.
Lágrimas sem água corriam por vós e sobre vós.
A mão meiga e sem carne era etérea seda em vossas faces.
O olhar transparente deixava ver as estrelas incontáveis.
Doçura em estado puro correu em vossas veias como um mel,
Sem a mediação que deve percorrer distâncias.
Um sentido, um caminho, uma vontade,
Eram enxertados em vós como videira.
E quando esse vento imóvel vos deixou,
Permanecendo em vós ao mesmo tempo
Por um sortilégio dos espaços abstractos,
Vós dissestes:
Mãe!

11/5/2012






NO SANTO SEPULCRO

Primeiro dia.
Morreste.
Descansas agora sem caixão
Na pedra fria.
Vais enfrentar a quarta tentação.

Segundo dia.
O doce torpor que sabe bem.
Tão longe do Calvário,
Tão longe de Belém,
Agasalhado no sudário,
Trancado atrás da pedra que defende
Do escárnio, dos pregos, da ofensa.
(Já nem tens de perdoar a quem te ofende…)
E ninguém sonha, ninguém pensa,
Que vives a tua hora mais penosa,
A hora da quarta tentação.
Como é difícil resistir
À pastosa sedução
De te deixares dormir,
Não acordar jamais…
Chamam por ti os homens,
Os de hoje, os que hão-de vir,
Mas o sono chama mais…

Quase vencido.
Poder dar repouso ao corpo tão dorido…
Rezas ainda, mas nem assim
O sono deixa de chamar.
E já não lutas mais,
Dormes por fim.

Acorda-te um sussurro,
Uma voz meiga:
“É o terceiro dia…”
Levantas-te, sorris, de novo tu,
E corres a abraçar Maria…

18/3/2012 (Páscoa)



NATAL 2011

Tempo polar.
Facas de gelo
Cortam o selo
Deste mal-estar.

Que transparente,
Quase a rachar…
Que frio lunar
Luminescente.

Pálida luz,
Vinda de longe.
Ao longe um monge
Sob o capuz.

Luz nevoenta.
Estrelas caídas
Nas avenidas
Em morte lenta.

Mas, de repente,
Transformação:
O Inverno é Verão,
O frio é quente!

Tempo-sinal,
Tempo-promessa:
Jesus regressa,
É o Natal…

7/12/2011


PÁSCOA 2011

Do alto do Madeiro,
O Teu olhar de dor
Abarca o mundo inteiro,
O mundo pecador.

Face ao olhar vazio
Da Tua sentinela,
Reténs um arrepio,
Deténs Teu olhar nela.

Toda a Humanidade
Naqueles olhos baços
Fechados à Verdade
Por mais que abras os braços.

O Teu amor, em chamas,
Até por esse algoz,
Apaga-se nas lamas
Do seu olhar sem voz.

Mas Tu estendes a mão
Que tens pregada à Cruz.
Rente ao centurião
Perpassa a Tua Luz.

A Teus pés se debruça
A férrea sentinela.
E louva-Te e soluça,
E tudo é amor nela.

Lavou-lhe a vista o pranto,
E o rosto que era imundo.
Agora o Teu encanto
Abarca todo o mundo.

10/4/2011


O PRIMEIRO NATAL DO MENINO JESUS

Que noite tão escura,
Menino Jesus!
E tu à procura…
Que procuras tu?

Teu berço vazio,
Maria a chorar…
Volta para a gruta,
Não ouves chamar?

É o teu Natal,
Tens de estar ali…
Como pode haver
Um Natal sem ti?

Pára de correr,
Menino Jesus,
Que ainda vais ferir
Teus pezitos nus…

Volta para a gruta
E terás imenso.
Tens à tua espera
Ouro, mirra, incenso…

Tens à tua espera
Pastores e pastoras,
Eles reverentes,
Elas protectoras…

Tens o S. José,
Que lá está também,
Mas, mais do que tudo,
Tens a tua Mãe!

É noite cerrada,
Já te vejo a custo.
Que buscas agora
Atrás desse arbusto?

“É uma ovelhinha,
Tinha-se perdido.
É o meu Natal?
Tinha-me esquecido…”

Já dormes de novo
No teu berço alvo.
Vela-te, a teus pés,
O bichinho salvo…

20/12/2010

PÁSCOA 2010

Ontem à noite, a Última Ceia.
Depois, a Paixão.
O sangue de Cristo, como maré cheia,
Ensopa o chão.
Hoje são as Trevas, e quem quer que creia
Implora perdão.
Perdidos no medo que o Demo semeia
Na escuridão,
Cada um aguarda, cada um anseia,
A Ressurreição.

2/4/2010


O PAI NATAL E O MENINO JESUS

Um velho de barbas brancas,
O olhar malicioso,
Gargalhadas pouco francas,
Em vez de alegria, gozo.
Embaixador da ganância,
Vem em todos os natais
Espicaçar a nossa ânsia
De querermos sempre ter mais.
Aparece em todo o lado:
“Compre isto e isto e aquilo!”
E até vende fiado,
E vende o amor ao quilo…

Volta, Menino Jesus,
Com tua luz benfazeja,
E tira o gorro ou capuz,
Ou lá o que quer que seja,
Ao nojento Pai Natal;
Tira-lhe o cinto e a estola,
Despe-lhe a farda do mal
Que lhe pôs a Coca-Cola;
Vem desnudar teu algoz,
Quem te fez desaparecer,
E faz surgir ante nós
Quem ele era antes de ser
O velho cínico e mau:
Faz surgir São Nicolau!

19/12/2009


NATAL 2009

Meu Cristo Crucificado,
Só ao ver-te escorraçado
Percebi quanto te amo.
Por isso digo: Obrigado
Pelo ditame cretino!
E em voz alta proclamo:
Que vale esse tribunal
Se se aproxima o Natal
E com ele o Deus Menino?

19/12/2009


PÁSCOA 2009

Jesus
Torturado
Na cruz
Pelo pecado
Alheio.
No meio
De dois
Ladrões.
Depois
Das humilhações.

Jesus
Morto
Na cruz.
Após
O Horto
Das Oliveiras.
Após
Horas inteiras
A agonizar.
Por nós.
Por nos amar.

Jesus
Ressuscitando!
A luz
Gritando
Vitória!
O Senhor
Da História
E do Amor
Venceu!

……………………

Venceu?
Desengano meu:
Passados dois mil anos
Sobre o sacrifício pascal,
Nós, seres humanos,
Persistimos no mal.
E, dia após dia,
Jesus continua em agonia…

27/3/2009


NATAL 2008

É Natal e há crise financeira,
O dinheiro evapora-se nos ares,
Vendem menos as lojas, os bazares…
Quem enche os sapatinhos na lareira?

De tanto desejar os bens terrenos,
Eis-nos todos à beira da pobreza.
Nem todos o mereciam, com certeza,
E quem mais merece é quem sofre menos.

Mas a maior pobreza que há no Mundo
É falar-se tão pouco de Jesus:
Um silêncio de trevas que reduz
A alma a lume negro a ir ao fundo.

É Natal e há crise financeira:
Este vazio saibamos nós usar
Para erguermos em nós um santo altar
À noite que é de todas a primeira!

12/12/2008




NATAL 2006

Tiram das escolas Cristos,
Os servos do deus do Mal.
Blasfemam p’ra ser bem vistos,
Mas celebram o Natal.

Matam bebés por nascer,
Os servos do deus do Mal.
Só vivem para o prazer,
Mas celebram o Natal.

Destroem a Criação,
Os servos do deus do Mal.
Só adoram o cifrão,
Mas celebram o Natal.

Jesus, vem-nos ajudar,
E lembrar a quem esqueceu
Que o que vamos celebrar
É o nascimento Teu.

29/11/2006


NATAL 2005

Passou mais um ano e mais um Natal,
Com este já vou em quarenta e sete.
Repito os costumes e o ritual,
Mas o tempo, esse, nunca se repete.

Tiraram este ano Cristos das escolas,
Os últimos Cristos nalgumas aldeias.
O novo Senhor bebe coca-colas,
Não tem ideais, nem sequer ideias.

Num mundo em que a Cruz se tornou um estorvo,
O Mal já só pode derrotar o Bem.
Meu Deus, é preciso que nasças de novo
No frio de uma gruta algures em Belém.

24/12/2005


A SEGUNDA VIRTUDE TEOLOGAL

Quis encontrar a Esperança.
Não a consegui ler nos salmos de David.
Nem no Cântico dos Cânticos.
Nem nas palavras dos profetas.
Nem nos mais sábios pensamentos
Dos mais sábios pensadores
Dos últimos milénios.
Sim, eu sei, ceguei há muitos anos,
Quando decidi que sondaria
Os abismos insondáveis
Sem deixar que ninguém me conduzisse.
Quis encontrar a Esperança.
Não a consegui ver sequer nos olhos de Jesus,
E até o Sermão da Montanha era um bloco negro,
Opaco, impenetrável.
Foi quando o meu Anjo da Guarda me lembrou
“O Estrangeiro” de Camus.
“O Estrangeiro”?, perguntei, estupefacto.
“Desce até ao fundo desse livro.
Depois, junta toda a tua força,
E vira-o do avesso.”
Incrédulo, assim fiz, contudo.
E descobri-a, a Esperança,
No reverso, nas costas, no lado-de-lá
- Do Absurdo.

11/8/2001




NATAL 2000 (II)

Sinto-me em paz com os homens,
Com Deus e com o Destino.
Esta noite, à meia-noite,
Nasceu de novo o Menino.

Sei o que devo fazer,
Tudo é claridade e luz.
Esta noite, à meia-noite,
Nasceu de novo Jesus.

Sinto-me em paz com o mundo,
Sinto-me cheio de amor.
Esta noite, à meia-noite,
Nasceu, num berço de palha,
Outra vez o Redentor.


25/12/2000

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