Antologia de obras publicadas por Teresa Ferrer Passos (heterónimo Teresa Bernardino )


ANTOLOGIA DE OBRAS PUBLICADAS
por
TERESA FERRER PASSOS  (heterónimo TERESA BERNARDINO)











SANTA TERESA DO MENINO JESUS 

E A FORÇA DOS SEUS PEQUENOS CAMINHOS

(Ensaio psico-biográfico)








«(…) Como é agradável dar o que temos dentro do nosso ser. Dividir com aqueles que estão mais ou menos próximos é uma obsessão para Teresa do Menino Jesus. Que alegria dividir aquilo que passa pelas suas emoções. Que conforto dividir os seus sentimentos, as suas lágrimas de dor ou de alegria. Que benefício entregar a sua alma aos futuros leitores. A sua irmã Paulina, Madre Inês de Jesus, toma a incumbência de a editar após a sua morte.»



«(…) Ao partilhar a sua fé, sente que aqueles que um dia a lerem, ficarão enriquecidos. Afinal, nada é absolutamente nosso, só nosso. Como é agradável dar o que temos dentro do nosso ser. Dividir com aqueles que estão mais ou menos próximos é uma obsessão para Teresa do Menino Jesus. Que alegria dividir aquilo que passa pelas suas emoções. Que conforto dividir os seus sentimentos, as suas lágrimas de dor ou de alegria. Que benefício entregar a sua alma aos futuros leitores.»

«(…) Aqui, a palavra «alma» diz respeito ao mais íntimo dos seus pensamentos. Os pensamentos que lhe percorreram a alma, a mais retirada das moradas, estão nas folhas deste caderno íntimo. E precisamente para os oferecer à Virgem Maria que lhe sorri e, desse modo singelo, lhe mostra que a quer escutar, que a quer pronta a dialogar com ela. O sorriso da imagem da Virgem Maria guia Teresa na construção de uma ordem que é acima de tudo uma grande harmonia a assemelhar-se a um pequeno universo mental, todo claridade, concertante, de beleza imprevisível.
Naqueles papéis tudo vai parecer guardado como numa pequenina arca de coisas sacras; todos os sentimentos se guardam como se fossem exercícios de aprendizagem, de construção sublime de um eu profundo e lírico, umas vezes amargurado, outras vezes a sorrir com uma esperança infinita.»

Fonte: Teresa Ferrer Passos, Santa Teresa do Menino Jesus e a Força dos seus Pequenos Caminhos, Edições Carmelo, 2013, pp.4-5, 9 e 14.




ANUNCIAÇÃO
(Romance histórico)




«(…) A transcendência descia aos vales e às vertentes dos precipícios, através do corpo da pequena Maria. Pela mágica muralha, a eleita ascenderia à montanha que Jesus ia subir. Tudo o que se estava a passar era uma teofania. Desde a Anunciação. Porque Jesus ia ser gerado no ventre da mulher para regenerar a vida com a arma do Amor e da Verdade. Mas não seria ela já, e desde a infância, idêntica a Deus?… Nestas interrogações difusas, a memória da mensagem do anjo ressurgia no coração de Maria. Quase a desfalecer de cansaço e ainda com a vibração gloriosa do tempo da Anunciação.
A imaginação dispersava-se em sucessivas visões oníricas. Depois, Maria sentia-se envolvida num delírio de entrega e de abandono. Um mar vastíssimo e luminoso morava no seu pensamento; miríades de inscrições lembrando a redenção salvadora tinham nela a aparência de pétalas de camélias vermelhas e brancas. De súbito, começou a ouvir sons vindo das suas entranhas. Era a voz muito frágil do menino. Encostava a cabeça sob o ventre insuflado de sua mãe. E Maria ouvia suaves palavras, mas ainda enigmáticas... “Devo ir ao Templo… os rabis discutem o Livro do Levítico, escrito pelos seus antepassados” dizia o pequenino, sem que Maria entendesse o que significavam aquelas palavras. 
«Deves estar a falar da tua missão, meu filho, mas não tenho a certeza», disse Maria, sem pronunciar qualquer palavra. Temia que José ficasse ofendido com esta referência ao Templo. “Mãe, o céu é aqui, na terra, onde brotam as frágeis folhinhas e os frutos minúsculos muito verdes e duros e depois com o sol amarelecidos e de uma moleza aquosa”. «Que coisa maravilhosa é saber que gostas destas maravilhas que crescem ao nosso lado», disse Maria, cheia de alegria. “ Mãe, não imaginas como gosto de receber os beijos, as carícias com que me tocas no meu sangue, na película que me encobre… mas quero que saibas como será inútil procurares-me, quando não me encontrares”. «Como posso não te encontrar? porque me dizes isso?… mesmo agora, já vivo aterrorizada por saber que aqueles que não aceitarem a tua palavra, te odiarão, e deles receberás injúrias e te hão-de denunciar, condenarão os teus actos de amor como um crime, te perseguirão e depois serás humilhado no teu corpo e no teu espírito e julgado e perderás a vida muito cedo!» “Isso só acontecerá, minha Mãe, quando chegar a hora da redenção!” «Como me aterroriza pensar que tem de chegar essa hora, filho!» “A minha hora é um instante sem tempo que me espera e a ti também na plenitude da alegria do amor de todos os puros, de todos os santos”. «Meu coração arde, filho, com medo do teu martírio, um jovem tão belo… e sabes como aguardo o tempo de estar na tua serenidade!» “O futuro é, para ti, Mãe, uma profunda gruta e nele só pode morar a certeza!” «Oh, filho, como a tua sabedoria me ilumina sem cessar! as minhas entranhas de sangue e de humanidade, a envolver-te de amor, essa fidelidade sem limite, parece intensificar-se com o meu sofrimento! sem as minhas mãos para enxugar as tuas lágrimas… e nos teus olhos a imagem dos traidores… como me dói e me dá alegria pensar que romperás o meu ventre e logo te afastarás da minha intimidade de corpo! separar-me de ti um só instante é uma dor sem fim e ver-te neste mundo, onde passarás como cordeiro expiatório num tempo da Páscoa, vítima inocente da culpa!» “Nunca esqueças, mãe, que o meu nascimento é para cumprir uma grande missão! terei de discutir as sagradas escrituras com os senhores da lei, os rabis, e vou confundi-los… não se interrogam sobre os fundamentos do seu saber, e não serão perspicazes sobre o meu, muitas dúvidas os vão assaltar sobre o que lhes disser, não compreenderão os meus actos e deturparão as minhas palavras de Amor (…). Nesse momento, o pequenino calou-se. Então, Maria inclinou a cabeça sobre o ventre, num cansaço esculpido de contentamentos. “Vejo como estás contente, mãe!” disse. Ria-se muito e parecia dar pulos impetuosos dentro dela. O seu riso era já muito menos débil e mais nítido. Então, Maria riu-se também. E começou a olhá-lo sem o ver. Depois lembrou-se das palavras que tinham dado origem àquela conversa… Que contentamento não teria Maria, só de imaginar o seu menino ainda por nascer e já a pronunciar as palavras que soam mais alto que as dos profetas Oseias ou Jeremias. (…)»

Fonte: Teresa Ferrer Passos, Anunciação (romance histórico), Lisboa, Universitária Editora, 2003, p. 167.




O SEGREDO DE ANA PLÁCIDO
(Romance histórico)

  «(…) a caneta de Camilo estava na pirâmide como continua hoje ainda mais pequena e incapaz de escrever outras palavras ou nomes ou ideias ou sentimentos. O seu granito é mais pesado denso resistente do que a tinta que alimenta a caneta de Camilo. A tinta não escorre nas suas arestas nem no seu vértice e algumas letras estão a começar a desvanecer-se…sei que nos primeiros anos do próximo século o granito tombará sob o peso de um machado! sei-o de ciência certa como já disse um sábio antigo. Não gosto da pirâmide ali colocada como uma caneta eterna. Como é pequena! e não serve para esquecer, como julgava Manuel, que nos céus espera encontrar-nos numa noite (de invernia?). Como a reposição da justiça é frágil. As gargalhadas começam a ser abafadas pelo meu choro. É o que sei fazer, quer de noite quer de dia. Sempre inesperadamente.

  era Julho. Não me vem à memória o dia por mais que tente. Manuel ficou agitado. Veio em minha direcção. Mostrava ira. Ia bater-me de certeza. Em simultâneo, Nuno correu para dentro de casa e eu deitei-me sobre as folhas ressequidas das árvores que cobriam a relva. Procurei introduzir-me entre elas. Buscava-as como o refúgio mais seguro que podia encontrar nalgum lugar da quinta. Pensei que com a sua protecção não sofreria qualquer dor. Sentia o seu calor como se o inverno tivesse invadido de súbito o verão. Não sentia as mãos de Manuel sobre o meu corpo esguio. (…)»

  «(…) a mudança torna-me de repente a admirável coisa envergonhada de cor de atrofiado metal escrito numa língua que me parece sânscrito. O medo de alcançar a plenitude da jovem idade atormenta-me então e repito o título de um dos livros que Ana Augusta traduziu: Como as mulheres se perdem (primeiro volume da Colecção Biblioteca para Senhoras, que Ana idealizou para ilustrar as jovens incautas e as mulheres pouco preparadas para a vida)… rendo-me à realidade com um suspiro de alívio. Olho em volta de mim e compreendo de novo porque me encontro encerrado na biblioteca. Descobrir o sentido da palavra crime com tanta frequência usada nos romances do suicida. Esse romances que aceito como embarcações a atravessar um Olimpo coberto de inefáveis cascatas azuis e verdes-musgo ainda que a afundar-se nas garras secretas do desânimo.»

Fonte: Teresa Ferrer Passos, O Segredo de Ana Plácido, Edições Gazeta de Poesia, 1ª edição, Lisboa, 1995 (1º Centenário da morte de Ana Plácido). Esta obra foi reeditada sob o heterónimo Teresa Bernardino pela Vega Editora, (2ª edição, revista e aumentada pela autora), Colecção O Chão da palavra/ficção, Lisboa, 2000.  




FERNÃO DE OLIVEIRA
PRIMEIRO GRAMÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA
(Biografia histórica)




  «(...) Era o ano de 1532: a fuga de Frei Fernão (Fernando) de Oliveira do mosteiro de S. Domingos de Évora para Castela consumara-se. (...) Fr. Fernão de Oliveira tem vinte e cinco anos: Castela é o rumo escolhido. (...) Anos felizes e envolvidos na mágoa da lonjura pátria. Tempo de que não nos deixou testemunho, de que não ficou senão o rasto das suposições (...)

Em Espanha, onde o humanismo emergia com rapidez, Oliveira vivenciou, pela primeira vez, o gosto pelo culto do idioma pátrio. Foi aí que admirou a Gramática de la lengua castellana de E. A. Nebrija e quem sabe se não terá mesmo contactado com o seu autor. A presença de Fernão de Oliveira em terras de Castela, levou Galindo a supor que aí teria dado início à sua Gramática de Linguagem Portuguesa, publicada poucos anos mais tarde. Contudo, os estudos recentes de Maria Leonor Buescu, rejeitam a hipótese pelo facto de um dos exemplos escolhidos por Oliveira e, referindo a expressão esta cidade, sem a identificar, dizer respeito a uma cidade portuguesa, pois é uma excepção da língua portuguesa e não da castelhana. (...)

Um dos aspectos que caracterizou o homem do Renascimento foi o espírito crítico. A ele não foi indiferente Fernão de Oliveira. Efectivamente, os estudos linguísticos beneficiaram largamente com essa nova maneira de olhar os antigos documentos. Desde traduções sobretudo do latim, até à elaboração de dicionários e à composição de gramáticas − latinas ou em língua vernácula −, tudo se passava em função dos seus impulsos dinamizadores. O poder real soube aproveitá-lo a seu favor, incentivando os seus cultores: a língua era um instrumento de prestígio das nações e dos Estados! (...)»

Fonte: Teresa Ferrer Passos, Fernão de Oliveira − 1º Gramático de Língua Portuguesa, Edições Gazeta de Poesia, Colecção Labirinto, nº1, Lisboa, 1994, pp.27, 31, 32, 33.




EU, NUNO ÁLVARES
(Romance histórico)




  «(…) Pelo orifício estreito penetrava um luar aureolado de dourado sem temer amedrontar a noite solitária e o silêncio da minha cela. Despertei muito antes de ser chamado às orações, às vigílias e a todos os trabalhos que ocupavam o meu quotidiano, sempre idêntico e único. Nesse momento ainda não sabia se o inconsciente onírico não perturbava os meus pensamentos, se estava de facto acordado e se o que acabava de viver não era mais do que uma alucinação. A confusão de ideias, de imagens, de formas conhecidas e ignoradas, ocupava um lugar preponderante no meu cérebro, cansado de se interrogar sobre o significado daquelas vozes de silêncios prolongados ou sonoridade violenta: palavras que pareciam avisos celestiais entrecortadas por cânticos suaves onde o sublime mostrava não ter limite; figuras de aparência exuberante e colorida num azul-acinzentado, ou esverdeado, ou escarlate, não sabia bem definir.

  Agora recordo melhor: vi uma personagem em plano sobranceiro de longas vestes drapeadas e leves. Era Elias, o profeta, aquele que foi arrebatado por um carro de fogo puxado por cavalos e desse modo subiu ao céu. A sua voz elevava-se acima das restantes que, à distância, repetiam em tom invocativo o meu nome. Em seguida, o enviado do Senhor transmitia-me a mensagem, razão da sua intervenção: "Nuno, não deixes que a tua vida seja motivo das curiosidades profanas de cronistas a quem só a guerra interessa. Dá aos vindouros uma ideia mais aproximada de ti próprio". Depois vi-o afastar-se do meu horizonte e já a grande distância a sua figura delineava-se com toda a precisão. O que eu escutara ressoava o meu espírito e uma vontade enorme de obedecer começou a perseguir-me. Repentinamente, aquela visão foi substituída pela de montanhas cobertas de neve, onde anjos vestidos de púrpura e sedas orientais cantavam maviosamente Gloria in excelsis Deo. Em seu redor, uma profusão de magnólias e ramos floridos de amendoeira salpicavam a neve que eles pisavam devagar. Maravilhado com espectáculo tão pouco comum para os meus olhos, escutei uma entoação de mulher (não tive a certeza) alertando-me de novo para o serviço que os Céus me exigiam ainda. A luz irradiante das suas formas difusas confundiam-na com a alvura da neve, o seu olhar era envolto num ténue e enigmático sorriso, os lábios carmesim e os cabelos de ouro identificavam-na com uma mulher. Mas só quando me chamou filius meus entendi claramente: era a Virgem Santíssima, aquela Mãe misericordiosa que sempre me alentara nas circunstâncias mais dolorosas da minha vida. A alegria de a reconhecer estonteava-me. Queria dirigir-lhe um agradecimento, dar-lhe graças por tamanha honra em me ter visitado naquela monástica morada. Mas a voz embargada pela comoção não me permitia balbuciar uma só sílaba. Começava a desesperar porque todas as minhas tentativas eram inúteis. Debatendo-me nessa luta cruel, perdi a inebriante visão e os meus olhos escancararam-se numa escuridão que reconheci ser a da minha cela. O sonho confundia-se com a realidade, não descortinando qual deles era mais autêntico. As palavras proféticas incidiam no meu espírito perturbado e perplexo por esta visão ou sonho ou milagrosa imagem do mundo divino. 

  Muitas vezes sonhara naquela casa comunitária com batalhas em que participara, com as vitórias sobre o castelhano inimigo da minha pátria, com a desventura de minha filha precocemente falecida, com as cartinhas tão ingénuas e ternas de minha neta, com os sofrimentos dos presos que, com frequência, visitava ou com algum enfermo a quem dera a última esperança de salvação. Havia pouco tempo, recordei, o meu sono não fora tranquilo, talvez por termos lido na última oração do dia uma passagem do livro do Êxodo, que sempre me exaltava. Tratava-se do diálogo do Senhor com Moisés a propósito da partida para a Terra Prometida: “O Senhor, Deus dos Hebreus, mandou-me a ti para dizer-te: ‘Deixa partir o meu povo para que me sirva no deserto’ “.

  Esta frase despertara em mim uma meditação mais prolongada. A partida do povo para a Terra prometida lembrava-me, quando eu detinha a espada e o poder persuasivo, o tempo em que os portugueses me procuravam para reconquistar a sua terra, ainda que à custa de muito esforço e sacrifício. O Alentejo, que percorri sem cessar, era esse deserto imenso, com as suas planícies a perder de vista, a sua aridez tórrida ou gélida, conforme as deslocações se processavam ao longo do Estio ou do Inverno. Tal como o povo hebraico, os Portugueses tiveram um condutor indeclinável na vontade e na confiança, sempre pronto a ouvir as aspirações e a tolerar algumas infidelidades. Foi o Mestre de Avis, hoje rei magnânimo e impulsionador da grandeza pátria. Trespassado por estes pensamentos, tive um sono inquieto e vibrante: imagens de moribundos gemendo num campo infindável de areias pálidas e escaldantes contracenavam com os juízos de combatentes sem sinceridade, onde o despeito ignorava a alegria da alma vitoriosa. Sem se mover, o inimigo defrontava com desdém e ironia o manto da derrota, que o percorria pelo corpo ensanguentado, e o espírito de desistência ensombrava. Entre uns e outros, eu olhava distante o festim dos vencedores, que não me reconheciam, e a revolta dos vencidos, que sentiam só a mim dever o infortunado fim.

  A agitação em que este sonho, tido há algum tempo, me envolveu foi bem diversa daquela em que me sentia mergulhado. Estava confuso perante ideias pouco claras e difusas. Contudo, pressenti que algo ia mudar na minha vida, idêntica, no quotidiano, à espera da eternidade. Como sempre desejei servir, mais do que ser servido, não podia recusar um serviço não ditado pela vontade dos homens e da Nação, mas suscitado pela vontade divina. 

  Sempre pressentira, na minha existência, um olhar superior que velava por mim, que me protegia dos perigos defrontados, sem temor da morte, que me indicava os caminhos a trilhar, mesmo que fossem mal aceites pelos meus contemporâneos. Ao fim de dois anos passados no claustro de Nossa Senhora do Carmo, num monte sobranceiro à esplendorosa cidade de Lisboa, e cuja construção tão devotadamente concebi, talvez tivesse chegado o momento de realizar a missão de que o profeta inesperadamente me incumbia. O tempo que dedicara à defesa da Pátria, aos assuntos políticos e à erecção de monumentos em louvor de Deus e da Virgem fizera-me desprezar a anotação de factos, a conservação de discursos exortativos aos soldados improvisados ao longo dos caminhos, a preservação de cartas de companheiros ou a Leonor de Alvim. Somente os romances de cavalaria ou os livros de religião me acompanhavam, em tempos de paz ou na hora de soarem os clarins de guerra. (…)»

Fonte: Teresa Bernardino, Eu, Nuno Álvares, Publicações Europa-América, 1987, pp. 15-17.




SOCIEDADE E ATITUDES MENTAIS EM PORTUGAL
1777-1810
(Ensaio histórico)




  «(...) a justiça não abrangia todos com iguais castigos, pois um Fidalgo de solar não podia ser preso senão por feitos em que merecesse "morrer morte natural ou civil" e um juiz ou um cavaleiro não podiam ser vítimas de torturas; por outro lado, se alguém arrenegasse ou descresse de Deus pagaria 4.000 réis e era degredado um ano para África, se fosse cavaleiro ou escudeiro, enquanto se fosse peão recebia "30 açoutes ao pé do Pelourinho com baraço e pregão e pagaria 2.000 réis" (...)»

  «(...) Vivendo sempre na dependência do pai ou do marido, não tinha outro objectivo que não fosse o casamento. O assunto era olhado como um negócio, em que os interesses das famílias eram prioritários. Pensando que se libertavam da tutela paterna caiam em outra tutela. Mas era preciso cumprir a missão que Deus lhes dera: ter filhos para não deixar a família sem descendência. Como diziam os livros piedosos e as meditações , como repetiam os padres nos sermões dominicais, a sua função era relativa à procriação. (...) A mulher continuava a ser o símbolo do pecado, da tentação, do demónio, como na Idade Média (...).»

  «(...) Lê-se num Manual de Piedosas Meditações, datado de 1780: " O tempo de infância e puerícia é mais vida de brutos, que de homens; porque nela não se obra nem se faz coisa alguma digna de um homem». E acrescenta: "Que coisa é o homem em sua infância senão uma pequena besta privada da razão só com a aparência da figura humana? Que coisa é a mocidade senão um cavalo indómito e desenfreado?". O pouco valor dado ao tempo à infância está aqui bem testemunhado (...) Mas a "familiaridade dos dois sexos" constituía talvez a mais importante questão na educação das crianças (...).»

  «(...) A permissividade na acusação é um fenómeno que acompanha o processo 1807-1810. Prática secularmente prosseguida, devido ao difamatório e arbitrário processamento inquisitorial, apenas se altera nas motivações que, de ordem religiosa, passam a de ordem patriótica. (...) Todos são olhados como suspeitos, porque todos podiam ter colaborado ou colaborar ainda com o invasor. A acusação converteu-se numa arma não só dos que temiam os "afrancesados" como dos que o eram. (...) As denúncias de simpatizantes da maçonaria deu azo a numerosas prisões e condenações ao exílio. (...) A atitude persecutória, a acção denunciante não eram formas novas produzidas pela crise de identidade ao longo dos anos 1807 a 1810. De facto, tratava-se de uma estrutura mental que se desenvolvera desde a segunda metade do século XVI, ou seja, depois do estabelecimento da Inquisição em Portugal. (...) Uma inconsistente denúncia bastava para conduzir aos seus cárceres milhares de vítimas inocentes, alvos de malquerenças e do espírito intriguista dos que estavam sempre prontos para incriminar os vizinhos. (...)»

Fonte: Teresa Bernardino, Sociedade e Atitudes Mentais em Portugal – 1777-1810, Lisboa, Imprensa Nacional, Colecção Temas Portugueses, 1986, pp.71, 109-110, 112-113, 216, 219 e 220.




O SENTIMENTO PATRIÓTICO EM PORTUGAL
(Ensaios)




  «(…) Desde 1815 até 1830 assistiu-se à proclamação da independência de vários povos da América Latina (em que destacamos o Brasil) e da Europa, tais como a Sérvia, a Grécia e a Bélgica. Esta movimentação autonomista dos povos vai desencadear o reaparecimento da ideia federalista que a formação dos Estados Unidos da América tinha prenunciado pouco antes da Revolução Francesa. Deste modo, alguns pensadores e teóricos do Poder começam a procurar um princípio que, na conjuntura oitocentista, respondesse à tendência separatista dos Estados, para evitar uma pulverização semelhante à atingida na sociedade medieval. O princípio que se afigurou mais vantajoso, viável e vanguardista foi, sem dúvida, o do federalismo. A partir de 1841, com E. Charrière formula-se a doutrina da unificação das raças para consagrar o estabelecimento da «unidade geral da Europa» através da «absorção dos pequenos Estados pelos grandes»*. Estas ideias foram prosseguidas por Mazzini que publica, em 1849, Santa Aliança dos Povos e por Proudhon que escreve, em 1863, Do Princípio Federativo. Ora, foram estes teorizadores que provocaram uma remeditação sobre o que era, de facto, a pátria, o patriotismo, a nação. Não obstante, verificamos que a decadência do princípio das nacionalidades é um facto como o atestam as unificações italiana (em 1861) e alemã (em 1871). (…)»

  «(…) E se o sentimento patriótico (em Portugal) foi deformado e obliterado por longo tempo ao identificar-se com o mito sebastianista, a sua significação originária manteve-se latente na alma nacional. O declínio do sentimento patriótico acentuar-se-á com a propagação das ideias iberistas-federalistas desde meados do século XIX até ao limiar do século XX. (…)»

*La Politique de l’Histoire, pp. 327 e 373.

Fonte: Teresa Bernardino, O Sentimento Patriótico em Portugal (Contribuição para o seu Estudo), Lisboa, 1983, pp. 61, 63-64. Trata-se de um excerto do artigo intitulado «O Patriotismo, o Futuro e Portugal» incluído no livro acima citado (a 1ª publicação deste artigo foi feita na Revista Nação e Defesa, Lisboa, 1980, nº 14, pp. 93-102 e, posteriormente, na antologia Reconnaissances du Systeme Militaire Portugais, organizado por Alain Montech, Universidade de Toulouse, 1982, Vol. VII, pp. 31-45).





O GRÃO DE AREIA
(Contos)




  «(…) A solidão envolvia o espírito do Mar como uma serpente de asfixiante ondulação. Quase não podia respirar. Umas vezes, ficava ofegante, num cansaço inexplicável, cheio de sofrimento. Outras, a sua respiração era tão ténue que ele mesmo duvidava da sua existência. Quando as noites eram chuvosas e os relâmpagos iluminavam as sombrias grutas do seu interior, as nuvens espessas viam brotar lágrimas do seu olhar extasiado, a reflectir aquele espírito esgotado de uma vaga saudade impenitente. Era o choro da desdi­ta, mascarando-se de chuva agreste, penetrando as suas profundezas. Ondulando com violência brusca, revoltava-se contra o destino adverso de o colocar frente à tempestade avassaladora, quem sabe se a pretender extinguir a sua existência solitária.
  A solidão não o enfraquecia. Dilacerava-o. Aprisionava-o. Mas, ao mesmo tempo, criava nele energias desconhecidas, poderes fantásticos, vontades indomáveis. E uma saudade emergia sempre, como um delírio tenebroso a expandir-se na luz de uma eterna esperança. Saudade! Essa voz melodiosa a sussurrar gritos de ousadia, essa lágrima ver­tendo salgados espaços sem fronteiras, essas ondas de ausência sem passado, sôfregas de futuro.
  Meditava, parecendo vergado pelo peso ciclópico de Titãs: “A que distância estou de mim, tendo tudo no meu reino, além e aquém! Generosa divindade me concebeu como a perfeita criatura! Tudo vive porque eu vivo! De tudo sou o centro e o sustentáculo. Miro-me nas águas de mim próprio, porque tudo existe, enquanto a vida pulsar neste coração salino e o meu espírito vegetal perpetuar os mundos abismais das cristalinas águas da ausência. Mas esta dor atroz, a penetrar como seta veloz e implacável no âmago do meu ser. Oh fatalidade, oh desventura amarga e constante, porque me perse­gues? Porque afrontas meu espírito sem uma trégua de tempo piedoso, sem uma ausên­cia dessa ausência. És cáustica, atordoante, por vezes, gélida, oh obscura, oh misteriosa na minha interioridade plena de tudo! Quero lembrar-me e não posso! Não há ainda lembrança, a saudosa lembrança. É a Idade do Ouro! E sofro porque, sem memória, não sofro! Guardo tesouros imortais nesta arca marítima. Nada existe fora dela. A beleza, o tempo, a vida, o espírito, todos imortais, nas entranhas do meu ser infinito. Sinto-me na mansão perdida, como se nada possuísse; vazio, vago, ausente e com uma tristeza a crescer em castelos de vagas alterosas, num atropelo sem fim, num esgotamento”.
  Assim o Mar passava o tempo na Idade em que o tempo não passa. Contudo, as horas pareciam-lhe dias e os dias assemelhavam-se a anos. Que demora, que prolongada espera... E o espírito sacudia a mágoa no excelso marulhar das envolventes águas. Até que estranha sinfonia se escutou. Desusada, inaudita, única. Algo emergia de um silêncio sepulcral. Algo estremecia o profundo num fragor arrepiante. Desintegração do vigoroso Mar? Perturbação da sua alma solitária em demasia? Ou um novo tempo, com um novo mundo, nascia?»

Fonte: Teresa Ferrer Passos, "Amanhã", O Grão de Areia (contos), Lisboa, Universitária Editora, 1996, pp .200-202.




A REVOLUÇÃO PORTUGUESA DE 1383-1385
(Ensaio histórico)




  «(...) Um dos factores mais importantes para a consolidação da identidade portuguesa foi a vulgarização, desde os meados do século XIII, do português em muitos documentos públicos e privados. No tempo de D. Dinis (princípios do século XIV) tornou-se a língua oficial, substituindo o latim em todos os diplomas da chancelaria. (...) Paralelamente, a tradução de obras estrangeiras para português, intensificada nas primeiras décadas do século XIV, desenvolveu o amor à língua da terra-mãe e a sua expansão como idioma que se libertava dos limites da oralidade: "os primeiros textos em português dos princípios do século XIII são quase traduções literais do substrato latino". Em 1290, a criação do Estudo Geral (estabelecido em Coimbra de 1354 a 1377) constituiu outro significativo avanço para a afirmação da cultura portuguesa. Esta instituição contribuiu para a laicização da cultura, que deixou de ser monopólio dos meios eclesiásticos. Os mosteiros já não eram os únicos centros com bibliotecas. (...) O Amadis de Gaula teria sido dos romances mais divulgados e apreciados no Portugal do século XIV, antes da crise de 1383 (...)»

Fonte: Teresa Bernardino, A Revolução Portuguesa de 1383-1385, Publicações Europa-América, Colecção Saber, 1984, pp. 82-83.





CARTA-MEMÓRIA À MÃE




  «(...) Não podias ver-me na angústia dos dias cobertos de cinza sem calor. Dias que só tu eras capaz de iluminar com a palavra, o sorriso, o olhar doce. Doce como o mel mais puro dos deuses mais exigentes. Tu transmitias doçura mesmo quando choravas e as lágrimas ficavam encovadas, inertes, como se não quisessem morrer na tua face sequiosa de amor. (...)»
  «(...) O Director da enfermaria ainda não chegara e, sem a sua presença não podias entrar. À porta do Hospital estavas... Inesperadamente uma médica abeirou-se de mim. Contei-lhe o que se passava. Autorizou o teu ingresso na enfermaria, finalmente! Agora irias ser socorrida, esperava eu, ingénua. Um calmante era indispensável! Levaram-te para a cama 5. Fiquei junto de ti. à espera de uma enfermeira. Mas ela não aparecia. E os teus vómitos (nervosos) não cessavam. Exausta! E sem descanso, continuavas. Procurei a enfermeira de serviço. “Já lá vou! Estava a prestar cuidados higiénicos nas camas do compartimento ao lado.” “Mas a minha mãe não pára de ter vómitos!” – exclamei. Resposta abrupta: “Ela oficialmente ainda não está na enfermaria!” (...)»

Fonte: Teresa Bernardino, Carta-Memória à Mãe, Lisboa, 1991, pp. 14 e 25-26.





ENSAIOS LITERÁRIOS E CRÍTICOS




  «(…) Aproxima-se o ano de 1990. E com ele o centenário da fundação da primeira universidade portuguesa. A Universidade ou Estudo Geral surgia, na cidade de Lisboa, em 1290. Reinava D. Dinis, o rei português que antes do movimento descobridor mais pugnou pelo desenvolvimento da cultura e, simultaneamente, da língua que lhe deu expressão. Era a língua portuguesa a preferida pelos poetas líricos da Península Ibérica. Com esse instrumento, o sábio Afonso X de Castela compôs os seus belos versos de poeta-trovador. E seu neto, o rei D. Dinis, escreveu, com os seus vocábulos o mais vasto conjunto medieval de cantares de amigo. A poesia era a expressão escrita mais frequente, pois a prosa dava predominância ao latim - a língua universal do mundo medieval.
  Por isso, o rei-poeta procurou dar à expressão linguística da nação a fluência que só o exercício da prosa pode conferir. O objectivo maior de D. Dinis era, contudo, a dignificação da prosa em português, numa época em que o latim era a língua usada na maior parte dos documentos oficiais do reino. E se bem o pensou, melhor o fez. A língua portuguesa oficializou-se: nos primeiros anos com timidez; depois, a prática da nova expressão foi-se impondo e a documentação política, económica e social apareceu na língua vernácula. Maleabilidade, finura e variedade vocabular só os tempos e as mudanças lhe podiam imprimir. A decisão régia seria decisiva para que Portugal se impusesse como nação, não apenas com identidade política, mas igualmente com identidade cultural.
  Recentemente, a Sociedade Histórica da Independência de Portugal lembrou o notável acontecimento, apesar dos seus escassos meios: num pequeno espaço da sua sede, em Lisboa, reuniu legislação, poemas, gramáticas, estampas, etc. Todos evocavam o VII Centenário da oficialização da língua portuguesa. Oficialização que D. Dinis procurou alargar com medidas que a justificassem plenamente: traduções do árabe (Crónica do Mouro Razis), do castelhano (código de leis das Sete Partidas de Afonso X), do catalão, do italiano, do francês. Neste ensejo, como não recordar a composição da primeira novela portuguesa de cavalaria, o Amadis de Gaula, que o insuspeito Cervantes classificou como o melhor de todos os livros que, nesse género, se escreveram? Como não referir os primeiros Livros de Linhagens, o Nobiliário e a Crónica Geral de Espanha de 1344 da responsabilidade de D. Pedro, conde de Barcelos, filho do próprio D. Dinis?
  As raízes do direito, da literatura e da historiografia de Portugal estão aqui bem patentes. Nestes domínios, viríamos a alcançar o prestígio internacional que testemunham um poema como Os Lusíadas de Camões, um conjunto de leis como as Ordenações Manuelinas, um romance como o Amor de Perdição de Camilo Castelo Branco.
  Mas, os avanços culturais referidos não teriam verdadeira dimensão para D. Dinis se a criação de uma instituição de ensino superior não surgisse: o ensino universitário, pela primeira vez liberto das ligações à esfera do religioso, surgia com os cursos de Leis, de Gramática e de Medicina, organizados em Lisboa, nesse ano de 1290. A língua portuguesa elevava-se à situação de língua de cultura superior, tal como já o eram o castelhano, o francês ou o inglês.
  A oficialização da língua portuguesa feita por D. Dinis, aparece hoje como o início de uma longa evolução, que terminaria, há poucos anos, com a oficialização do português nas antigas colónias portuguesas em território africano. Estes novos países juntaram-se ao grande país da América do Sul que fala português: o Brasil.
  Foi, neste contexto, que surgiu em 1986 uma hipótese de Acordo Ortográfico entre todos os países de expressão portuguesa. A ideia que está na origem deste Acordo era a da unificação ortográfica da língua portuguesa nos vários países, onde ao longo de séculos os Portugueses foram os administrantes. Ideia louvável para uns, ideia indesejável para outros. A polémica instalou-se e, em 1989, o Acordo continua a ser motivo de reflexões, de dúvidas, de acusações várias.
  Alguns dizem mesmo que, se tal Acordo se não verificar, será mais um imperialismo ideológico a pairar sobre o Português e a sua implantação num mundo a crescer. Esta asserção parece-nos um pouco exagerada, senão mesmo enfermando da falsa questão que a própria existência de tal Acordo encerra. E porquê? Porque nenhuma língua pode exercer um imperialismo, seja qual for a sua espécie, a milhares de quilómetros de distância, em regiões com tradições, hábitos e culturas tão diversas.
  Veja-se um exemplo sobre a artificialidade da questão das divergências ortográficas: quem se atreveria a dizer que um texto de Fernão Lopes ou um poema medieval não estão escritos em português? E como as suas ortografias e até a própria semântica divergem! Lembremos dois versos de uma cantiga de amigo do jogral Mendinho: «Sedia-m’eu na ermida de San Simon / E cercaron-mi as ondas que grandes son». A ortografia é diferente da actual, mas não deixamos, por isso, de a considerar escrita em português. Essa língua, de que consideramos herdeiros um David Mourão Ferreira ou um Alçada Baptista.
  A versatilidade de uma língua é a sua maior riqueza: versatilidade ortográfica ou versatilidade vocabular. Ao acrescentar novos termos à língua portuguesa, o brasileiro não desvirtuou o português, antes o enriqueceu com uma vitalidade imprevisível.
  Daqui a algumas décadas, algo de semelhante poderá verificar-se no português usado pelos países africanos de expressão oficial portuguesa. E só teremos de regozijar-nos com as novidades introduzidas, ortográficas ou semânticas. Esse o destino inevitável de qualquer língua que se adapte a outras latitudes. Nenhum Acordo Ortográfico poderá evitá-lo. Porque não terão feito os Franceses, os Ingleses, os Espanhóis, os seus Acordos Ortográficos em relação às regiões ou países que falavam as suas línguas, perguntam alguns. Entre nós, o problema parece crucial: desde 1986, linguistas, académicos, cultores da literatura portuguesa, têm-se dividido entre a sua vantagem ou a sua inutilidade, senão mesmo o seu carácter prejudicial.
  Se há vozes favoráveis ao Acordo, revelando a premência que ainda se exerce sobre os Portugueses quando pensam na perda de um universalismo sem espaço nem tempo a limitá-lo, há também outras que põem a importância da ortografia de uma língua no seu devido lugar. Um lugar importante, mas não essencial. Estes últimos avaliam a língua como um precioso instrumento de cultura, mas que contém um valor maior do que ele próprio. O valor da cultura que veicula, mesmo quando a ortografia ou a semântica se alarga. Foi nesta perspectiva que Fernando Pessoa escreveu: «A primeira coisa em que Portugal se tornou notável na atenção da Europa foi um fenómeno literário». Dando como exemplos a poesia medieval e a novela Amadis de Gaula, conclui: «O primeiro afloramento civilizacional deste país foi um fenómeno de Cultura»1. Deste modo singelo, mas esclarecedor, Fernando Pessoa homenageia o rei que tornou oficial, há sete séculos, a língua portuguesa. Essa cultura forjada ao longo dos séculos e que, mesmo dispersa pelos continentes onde os portugueses desembarcaram um dia, essa cultura, dizíamos, que não está sujeita a entraves ortográficos e que é a mensagem maior que uma língua pode transmitir. (…)»

1 Fernando Pessoa, Sobre Portugal. Introdução ao Problema Nacional, Ática, Lisboa, 1979, p.223.

Fonte: Teresa Bernardino, Ensaios Literários e Críticos, Universitária Editora, Lisboa, 2001, pp. 207-211.





ESCRITOS VOANDO NO TEMPO
(Ensaios)




Introdução 
«O TEMPO DE TERESA FERRER PASSOS (TFP)»
Diálogo com Floriano Martins (FM)

«FM – Creio que poderíamos começar esta nossa conversa pelo tema da heteronímia, buscando entender afinidades e desencontros existentes entre Teresa Bernardino e Teresa Ferrer Passos. Até que ponto se verifica uma despersonalização coerente com recursos estilísticos, por exemplo, empregados por um e outro personagem, ou, ao contrário, o assunto atende apenas a um expediente acadêmico?

TFP – A heteronímia é um sofisma humano. Nada a consolida, nada a eterniza. Tudo a deforma e faz ganhar pó. É uma azeda construção. Possui, em si, cadáveres amontoados na valeta da alma quebrada e triste. O não é o heterónimo do sim. O sim o heterónimo do não. Os meus nomes são voos rasteiros e atormentados de uma cinza fátua a digladiar-se com a minha consciência derrubada de sons denunciadores de vidas sem medo, cheias de uma audácia sem prémio algum. Os meus nomes literários - Teresa Bernardino, Teresa Bernardino Passos, Teresa Ferrer Passos, Teresa Ferrer - construíram-se a partir do meu nome a tracejado, ora um, ora outro, reescrito, desfeito ou arrasado como ruínas de casa nunca erguida. Estes heterónimos têm o ponto comum da verdadeira identidade, uma só, a identidade que é, Teresa. Como tantas outras igual a si, só igual a si própria, tenha que apelido tiver a juntar-se-lhe. Na igualdade possui o diverso: umas vezes, nas obras várias um só nome, outras, na mesma obra dois nomes - é exemplo disso o romance "O Segredo de Ana Plácido" assinado com o heterónimo Teresa Ferrer Passos na 1ª edição de 1995 e com o heterónimo Teresa Bernardino na 2ª edição de 2000 (edição revista). Um nome é uma falácia da realidade, não a realidade. Um nome envolve-se em ignorância de um eu que muitos (ou todos) podem destruir por falta de identificação ou reviver em si mesmo por sintonia. Os meus heterónimos nasceram de tempos a contradizerem-se no antes e no depois, na destruição à flor da pele crestada de Sol ou na reconstrução da vida incerta, vacilante e a olhar o ser já sem ser quem era e ainda a ser.

FM – Teus estudos críticos não deixam de caracterizarem-se também por sua abordagem histórica, ao mesmo tempo em que afinados a uma fluidez estilística bastante atrativa. Recordo uma provocação de Jorge Luis Borges ao dizer que os historiadores contemporâneos haviam perdido a capacidade de prever o passado. No ambiente da crítica literária, de que maneira verificas alguma falta de sensibilidade em relação à tradição e como este ocasional comportamento traz prejuízo para a construção de um corpus crítico mais afinado com nosso tempo?

TFP – A tradição está, na sociedade contemporânea, em decadência. Os valores tradicionais caíram quase num vazio, estão à beira de sucumbir, de ser aniquilados. Ou sobreviverão em minorias resistentes? Se estas não se manifestarem, não serão preservados. Os maus escritores dão origem a maus leitores, do mesmo modo que os maus moralistas dão origem a maus anti-moralistas. Poderia prosseguir com outros exemplos. A crítica literária recebe as obras literárias que rejeitam a tradição, logo essas obras são escritas não a tendo em conta. A crítica literária com a mesma ordem lógica, sendo coerente com a norma social vigente maioritária, apresenta-se também ignorando a tradição. A crítica literária e a literatura inserem-se numa sociedade materialista e tecnológica que assim rompe com a tradição. Veja-se a implantação do reino do computador e de todos os seus tentáculos, tais como os meios “tele-móveis” e “inter-néticos”. À tradição da escrita e da comunicação social só resta apagar-se ante o gigante que se ergue e estonteia a sociedade actual. Tudo começa a confluir num único sentido maioritariamente. O peso da novidade atrai e, desse modo, abate com facilidade o peso da melhor tradição.

FM – Mas está evidente que continuamos a confundir meio e mensagem, pois a novidade tecnológica não define o âmbito estético, por mais que lhe permita maior perspectiva de experimentação e circulação. Não podemos esquecer que o surgimento da escrita, lá atrás, foi um grande avanço tecnológico a romper com alguma “tradição”. Observando teu raciocínio inicial, indago então a respeito do comportamento das “minorias resistentes” em Portugal, em termos de preocupação com o balanço e renovação da crítica literária.

TFP – A grande mudança, diríamos mesmo, a revolucionária mudança, ocorrida desde as últimas décadas do século XX, foi a velocidade a que essa mudança se verificou. O meio, como o Floriano diz, não se confunde com a mensagem, mas é, nesta época, o propulsionador dela. E porquê? A abertura da comunicação às grandes massas faz-se de uma maneira rapidíssima e é precisamente essa rapidez que nunca se viu antes. É este factor que leva as mensagens estéticas a receberem os impulsos da tecno-sociedade/tecno-cultura e a serem alteradas, quase ao mesmo tempo. A tradição é contestada e logo abafada pelo novo. A crítica literária é abrangida por toda esta ambiência que quase cria e destrói, em simultâneo; o ambiente está, cada vez mais, a traçar o futuro, ou seja, a imprimir esquemas que se traduzem em mensagens estéticas. Assim, surge o caos estético que se torna um reino de tal modo poderoso que cresce num sentido omnipotente, avassalador da liberdade que, aparentemente, está a construir. A “minoria resistente” a este quadro globalizante da desagregação dos géneros, da edificação da intertextualidade despersonalizante e da implicação do desvanecer da originalidade, é isolada. A globalização tecno-estética provoca o império das massas acríticas, o avançar do pontificado do aparente (mundos simulados, sem espontâneo). A “minoria resistente”, só dificilmente alcança divulgação, prestígio ou credibilidade junto desta cultura ascendente e arrasadoramente sobranceira no seu materialismo totalitário. Parece-me integrar-se nesta “minoria resistente” o próprio pensamento do romancista Milan Kundera referido, recentemente, no editorial de Joseph Macé-Scaron (Le Magazine Littéraire (Maio/2009, p.3): «Há ideias que são como atentados. (…) A mania de estabelecer listas [de autores] instala-se, neste tempo, duravelmente (…). Ela dinamita o gosto, faz explodir o juízo, reduz a migalhas toda a análise. Uma elite autoproclamada fabrica opiniões; ela não as propaga por estudos críticos, discussões sábias, mas por fórmulas bombásticas, jogos de palavras, embustes brilhantes». Em Portugal, posso referir, dentro desta “minoria resistente”, os ensaístas José Augusto Mourão, João Barrento, António Cândido Franco ou José Fernando Tavares. Lembro, a propósito, algumas frases de José Augusto Mourão, que me parecem sintomáticas: «Não pensamos nem sentimos no vazio e, como na liberdade, é em face de um real, que se sente e se pensa, como é em face do que se nos opõe que se é livre»; «A experiência central da modernidade é a fragmentação, a ruína da unidade»; «A idolatria está aí: na sobrevalorização de Imagens que substituem as Coisas» (O Mundo e os seus Modos de Comunicação, 2005, pp. 33-34,187,212). 

FM – Tenho para mim que a máxima de Lautréamont de que “a poesia deve ser feita por todos”, mais do que o equívoco de leitura sociológica, digamos, quando se pretendeu que a poesia deveria ser feita para todos, firmou uma fatura preocupante no que diz respeito à defesa, por exemplo, que fazia Roland Barthes da morte do autor. A criatura não elimina o criador, antes o confirma. Assim como o receptor, por mais que se entenda sua condição de co-autor na trama da comunicação, jamais erradicará o emissor. Em meio a tudo isto, quando Deus permanece gozando plena saúde, como situas tua visão do tema?

TFP – O escritor, refiro-me ao ficcional (e também aqui me projecto na minha vertente de ficcionista), escreve “um pouco” para si e “um muito” para quem o possa vir a ler, agora ou no futuro (o tempo do desconhecido). Talvez Deus, como criador da mais minúsculo partícula elementar, tivesse dado origem a um cosmos fantástico, fabuloso na sua dimensão, e, assim, inimaginável. Sabemos, hoje, que a maior parte do universo é desconhecida do ser humano. A dimensão de Deus tem, neste contexto, a própria dimensão da Criação (incluindo as suas criaturas), sejam estas apenas humanas ou com outras variantes de vida. Ora, a Deus não é importante que o ser humano o venere ou o admire como autor. E, por analogia, o autor ficcional não deverá ter maior ambição. A única coisa que parece importante para Deus, tendo em conta a palavra de Jesus Cristo é o grau de perfectibilidade («Sede perfeitos como meu Pai é Perfeito») que foi atingido na obra criada – Deus, o escritor, e, de modo geral, todo o ser humano.

FM – Releio teu artigo sobre Jacques Prévert e recordo Aldo Pellegrini ao dizer que este poeta “constitui um fenômeno especial dentro da poesia”, e segue, vale citar: “Parece dominá-lo um espírito funambulesco em que por momentos Dada se mescla com Jarry. Porém não há poesia que tenha mais direção e sentido que a sua”. A partir daí, toca em sua condição de “poeta dos simples”, como te referes logo no título de teu artigo. Tu mencionas a ironia em Prévert e Pellegrini acentua sua condição de notável poeta do humor dentro da corrente surrealista. Como se entrechocam em nossos dias realidade e humor? E como, no caráter da escrita (que deveria ser o mesmo do sangue), tem se comportado os poetas, em Portugal, diante do tema?

TFP – Os poetas portugueses tendem, como o povo português ao longo da sua história, para o concreto, o realismo (ou neo-realismo no século XX). A literatura portuguesa contemporânea continua na linha realista ou naturalista. O realismo foi uma corrente literária fortíssima em relação ao surrealismo, sempre com pouco adeptos ou cultores no seu século de ouro, o século XX. E se o humor tem feito a sua aparição na literatura portuguesa (por exemplo, «A Relíquia» de Eça de Queirós, um certo Junqueiro ou um inesperado Camilo Castelo Branco) as excepções confirmam a regra. A alma lusitana tende para o tédio/infortúnio/saudade, não para o humor. Como disse Unamuno, os portugueses são um «povo de suicidas».

FM – Do surrealismo em Prévert passamos para o surrealismo em Portugal. Disse o Cruzeiro Seixas em uma recente entrevista que, em Portugal, “nós reinventamos Dada e até uma espécie de Surrealismo sem André Breton”. Qual reconhecimento a crítica portuguesa tem hoje acerca da atuação (em que se inclui naturalmente a obra, porém não somente) dos nomes ligados diretamente ao ambiente surrealista?

TFP – Esta afirmação mostra como, em Portugal, houve sempre mais uma fuga aos cânones do surrealismo do que uma verdadeira adesão ou atracção por esta corrente literária. Todo o romance ou poesia que rompe com o realismo, em Portugal, tende a ser olhado com desdém pelos editores. É o caso também do romance de inspiração científica. A ficção científica não é bem aceite em Portugal. Tenho três romances nessa área não publicados por falta de editor (um deles publiquei-o a minhas expensas). Os laivos científicos ou filosofantes, os sentidos metafóricos , o humor próprio do surrealismo, parecem ser para os críticos e para a maioria dos escritores e dos editores portugueses uma preferência só tolerável nos autores já consagrados pelo prestígio estrangeiro como é o caso de um Fernando Pessoa (poeta/filósofo) ou de um António Lobo Antunes (romancista contemporâneo com características que roçam o gosto surrealista).

FM – A língua, o idioma português, sempre esteve entre tuas preocupações críticas. Passamos agora mesmo por uma reformulação, um acordo ortográfico. Contudo, nossos países seguirão se desconhecendo entre si e as tantas maneiras com que enfrentamos o idioma em cada um deles, ainda que fossem uma só, jamais resolveriam um isolamento que não é de ordem linguística. Com tudo isto, o que me parece é que se amplia o território dos dominados, tornando a cultura um adorno descartável ou, a depender do caso, um objeto prejudicial à saúde da expressão oficial do poder. Estás de acordo?

TFP – A literatura portuguesa tem tido um fraco expansionismo no Brasil ao longo dos séculos XIX (pós-independência do Brasil) e XX-XXI. Também o contrário tem sido uma constante. Se os portugueses conhecem mal a literatura brasileira, assim como os outros campos da cultura de terras de Santa Cruz, os brasileiros também não têm tido acesso ao melhor da poesia, do romance ou da pintura portuguesa dos séculos XIX e XX. Se continuar a não haver diálogo entre o Portugal de Camões e de Agustina Bessa Luís (para só falar no maior poeta português e numa grande romancista do século XX) e o Brasil do grande contista Machado de Assis e da admirável romancista Clarice Lispector, o universo da Língua Portuguesa (agora alargada á África e à Oceania pela CPLP), continuará empobrecido e sem o esplendor (cultural/económico) da Francofonia e da Commonwealth. Esperemos que o Acordo Ortográfico seja um passo importante para atingir essa tão benéfica cumplicidade do “Mundo que o Português Criou” (Gilberto Freyre, 1940).

FM – Sim, um mundo criado pela língua, porém que se desconhece entre si, onde as afinidades culturais se desdobram por efeito mágico e não por programas de governo ou mesmo de associações de artistas e intelectuais empenhados no tema. Talvez estejamos dando demasiada função a este Acordo Ortográfico. Talvez um Encontro de Escritores de Língua Portuguesa pudesse render mais frutos, ou então a criação de programas de mútuo apoio de circulação de obras. Mas sequer as revistas, de cultura e literatura, que costumam representar uma vanguarda comunicativa entre países, nem mesmo deste veículo a língua portuguesa dispõe, de maneira a difundir sua cultura na extensão dos países que a conformam. 

TFP – A crítica de Floriano Martins é, sem dúvida, muito certeira. Ela reflecte bem a necessidade urgente de criar uma plataforma de entendimento alargado da cultura de língua portuguesa, à semelhança do que já acontece com a Francofonia, a Hispanidade ou a Commonwealth. Enquanto essa comunhão de identidades não se tornar comunicação concreta, através da partilha e da difusão de culturas, «um mundo criado pela língua», como diz Floriano Martins, soçobrará numa «apagada e vil tristeza», conforme a expressão de Camões em Os Lusíadas.» (…)

Fonte: Teresa Ferrer Passos, Escritos Voando no Tempo, Escrituras Editora, Colecção Ponte Velha, S. Paulo, 2009, pp. 8-14.






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