REFLEXÕES LITERÁRIAS
de
Teresa Ferrer Passos
(heterónimo Teresa Bernardino)
NA MINHA LÍNGUA, VIAJO NO MAR
de
Teresa Ferrer Passos
(heterónimo Teresa Bernardino)
NA MINHA LÍNGUA, VIAJO NO MAR
Perdido e sem sentido. Mas nosso, o mar. À sua beira, nos areais, Tejo adentro, crepita nos ares um cheiro a perda, a desconcerto, a rompimento. O povo pobre, disperso ou em uníssono, grita dentro de si um arraial cheio de mares descobertos e em ruínas. Ninguém troca palavras de esperança, mas de um desespero que toca as raias do inferno.
Um ministro risonho diz na televisão, nas rádios, nos jornais: Não há pobres, afinal todos recebem tenças de um estado a acabar… Mesmo que mal chegue para o pão de cada dia, mesmo que se corte nos medicamentos, afinal todos não podem ser senão ricos! Todos recebem demais deste estado a colapsar. Todos têm de pagar a crise que nos caiu em cima, todos são responsáveis, todos devem o que estão a receber! E um outro ministro, ainda mais jovem, sublinha: É preciso pagar a dívida do estado! Somos pela igualdade! Todos têm de pagar o descalabro que a Europa dos ricos nos ofereceu! Igualdade entre os pobres e os privilegiados das classes médias e mesmo altas!
Assim, para esses ministros do poder, os pobres não podem ser dispensados de contribuir para pagar a dívida soberana de um estado, que julga ter norte e ser justo na governação.
E um ministro de brancos cabelos também não perde a oportunidade de se pronunciar: Os pobres têm de contribuir com a sua própria pobreza! Quer se rompam, quer passem fome, deitem-se no mar da vossa miséria! E não olhem para trás, rumem ao desconhecido dos continentes! Fujam deste país, depressa! Não protestem mais aqui! Vão gritar lá para fora, até no mar que navegámos! Gritem a miséria em que se atolaram, mas não aqui! Metam-se na barca e ouça-vos o mar!
Os pobres, ao ouvirem isto, responderam: O mar é a nossa língua cheia de naufrágios, de caravelas e de Adamastores medonhos! Não temos medo, largamos pelo salgado e deixamos este estado a corromper-se, com tanta insensatez e loucura...
Depois, ainda um ministro sisudo repetiu: Ainda bem! Não, não fiquem por aqui, temendo as saudades da natal terra! Todas as migalhas que restam serão só para nós, nós os salvadores da nossa terra (sem concerto…)! Se houver alguns proventos serão para nós, pois os pobres… Bom, não digo mais nada!
Os pobres, exaustos da gritaria de ministros tão insanos, responderam: Iremos, mas levaremos o mar imenso da nossa língua. E o mar da nossa língua em que viveremos não se perderá do nome de Portugal, mesmo sendo nós os pobres, os sacrificados de impostos e taxas e deduções contributivas para este estado ingrato! No mar, enfim, teremos paz. O mar é do povo pobre que o atravessou no Século grande de Quatrocentos! O mar que nos levou a outros mundos. Esse mesmo mar é ainda nosso, como o foi de Vieira, de Pombal ou de Pessoa! O mar nos abraçará com as suas infinitas ondas e nos abrirá as portas do mundo que nós escrevemos em língua lusa. Nessa língua lusa a escrever-se, a exaltar-se e a dobrar os novos e não menos difíceis Cabos da Tormentas ainda.
27 de Novembro de 2012
(dia em que foi aprovado o Orçamento do Estado para 2013)
Teresa Bernardino
* Heterónimo Teresa Ferrer Passos
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A PROPÓSITO DE «ORPHEU, PORTUGAL E O HOMEM DO FUTURO»
«Num sentimento de febre
de ser para além doutro Oceano»
Fernando Pessoa,
“Para Além Doutro Oceano” (poema), 1917
Terrível superação e bendita, a de ser Pessoa o escolhido para abrir o caminho novo da pátria exausta, e, com ela, de todas as pátrias moribundas! Todas as pátrias a serem, no cume da montanha do tempo, uma só pátria a escrever-se na Europa apagada ainda por um mundo vil e degenerescente.
Num mar de oceanos múltiplos, cresceram os povos de tradições tão várias, a mudar com os séculos e os milénios, e, ao mesmo tempo, ensinando aos vivos identidades do presente e desvios da memória do passado. Cada um, a ditar o cérebro sem amarras do homem-super, sem diferenças de rumos ou desigualdades insuperáveis.
Aqui, num sempre Portugal a respirar Pessoa, nasce o imenso futuro da ideia nova que é capaz da ousadia, mesmo da temeridade de um oceano longínquo e imortal, podendo transformar povos inteiros num povo redimido por essa Europa a transbordar de espírito e de emoção, numa colheita imensa de sementes sábias.
Rumo à Europa dos novos descobridores de um mundo inteiro a dar-lhe a largueza dos mundos que o grego criou na Odisseia e na Ilíada mediterrâneas e que o português recriou nas navegações das Américas e do Índico e do Pacífico, essas geografias alheadas de si e sem saberem nada de quem chegava, urgente e inquieto.
Na oratória do Pessoa do Ultimatum (ass. pelo heterónimo Álvaro de Campos na revista Portugal Futurista, nº1 e único), datado de 1917, e do poema “Para Além Doutro Oceano” (revista Orpheu, nº 3, curiosamente também de 1917), Dalila Pereira da Costa vê o espectáculo pessoano das ondas, atravessadas com o lápis da cruz e da vitória, a inscrever-se no Velho continente das sabedorias e a elevar-se até à superação humana de Língua Portuguesa. Dalila vê a frota dos navegantes, como Pessoa, desde o estuário do Tejo até às margens do Danúbio.
Em Orpheu, Portugal e o Homem do Futuro, Dalila aborda a profecia do Ultimatum e de Para Além de Outro Oceano. Quando escreveu este opúsculo, no ano de 1977, viu uma Europa mundializada sob a égide da civilização luso-atlântica.
Hoje, numa perspectiva idêntica, vemo-la, contudo, diferente. Vemo-la agora Nova Civilização a renascer em novas literaturas sem papel, desenrolando-se em todo o papel invisível a circular, intenso e livre entre mares incomensuráveis. Agora, vislumbramos abismados os novos mundos da internética geração, dispersa e mesmo assim inteira, numa globalidade exaltante e, ao mesmo tempo, promissora via de espaços de muitos sentidos insuspeitáveis e cheios de novidade.
Uma Nova Civilização europeia começa, hoje, na tinta impressa nos ecrãs dos computadores e no olhar dos atlantes a sobreviverem num Portugal imerso em nevoeiro. E todos os navegadores da cabeça da Europa que é Portugal, essa janela aberta para as terras do longe atlântico, essa vontade de poder ainda a perecer, ressurgem das águas das salgadas marés, a espraiarem-se na voz emudecida e viva dos náufragos esgotados de sede e de ardor.
Com o Ultimatum nas mãos, Pessoa segue um rumo certo e intemerato entre linhas geométricas e astrolábios, junto a terras novas e secretas, pejado com todas as filosofias do conhecimento humano. Entre quadros negros de cálculos audazes de infinito a germinar na escola futurista de Sagres, os nautas do mar salgado de Quatrocentos unem-se hoje aos internautas dos espaços computacionais do futuro.
Num percurso de novíssimas máquinas, com a inteligência a transcender-se para vencer toda a mística de um universo a ser decifrado pelos novíssimos mares augurados na Mensagem (1934), forjam-se altos desígnios a contornar todos os tempos abismados com o emergir do tempo novo do super-homem. E foi Pessoa quem, em 1917, recriou um Super-Homem perplexo com a complexidade, com o saber completo e a arte da harmonia.
Como profeta da Europa decadente e a renascer, Pessoa pré-anunciava o Super-Homem no Ultimatum, com a audácia da Raça dos Descobridores e a lucidez da loucura mais funda que os abismos marítimos. Em Orpheu, Portugal, e o Homem do Futuro, Dalila Pereira da Costa descobria e tocava o Pessoa ávido da força dos heróis e intérprete da história oculta a não iniciados da sua Pátria dispersa pelo mundo. Vendo nela todas as pátrias, vendo tudo com todos os olhares e com todas as almas, Pessoa ascende ao topo da totalidade do Super-Homem teorizado pelo filósofo alemão Nietzsche em Assim Falava Zaratustra, escrito entre 1883-85. Um Super-Homem todo a espargir os seus limites, superados enfim.
Orpheu, Portugal e o Homem do Futuro, escrito em 1977, é um pequeno ensaio em que Dalila Pereira da Costa, a filósofa mística do Porto, faz renascer a “pequena pátria lusitana” com as tintas da exaltação mística desse Pessoa transfigurado no espantoso Ultimatum do ano de 1917. A esse expectante homem novo, prestes a eclodir numa Europa à procura de um Caminho para o realizar, em liberdade e na partilha fraternal, a Nova Civilização salta do seu visionarismo futurista, a alargar os braços até abraçar o mundo todo.
Ao lembrar este opúsculo da autora de O Exoterismo de Fernando Pessoa, alguns meses após a sua morte, sem ser morte verdadeira, pois Dalila aqui está viva na nossa lembrança, recordamos aquilo a que ela chamou a «suprema ascese de Pessoa visando a criação de um homem novo ou mundo novo (a partir da sua verdadeira Pátria, o mundo de Língua Portuguesa)». Como Dalila bem salienta também, Pessoa continuou a profética oratória do Padre António Vieira que, no século XVII, previa uma espantosa “História do Futuro” neste país herdeiro da mítica Atlântida, nesta escarpada costa marítima do Ocidente da Europa.
Escrevendo a pensar na gente lusa dos Descobrimentos para o mundo, o Ultimatum pré-anunciava, dezassete anos antes, o livro de poemas Mensagem publicado em 1934, apenas um ano antes da morte do “Super-Camões”. Os portugueses, como Dalila Pereira da Costa, ainda esperam pela realização dos vaticínios do Ultimatum. Esperam por um magnífico monarca, qual rei D. Sebastião, O Desejado, a arribar ao Tejo talvez n’ A Última Nau, poema profético dessa enigmática e imortal “hora”, que Pessoa nos anunciou numa hora incerta que não vamos esquecer.
Na verdade, Dalila Pereira da Costa também nunca a conseguiu esquecer, porque a “hora” para o mundo, precisamente de Língua Portuguesa virá, ainda que silenciosa, mas para ser no mundo uma «Gaia Ciência» a guiar os povos, cada um e todos a envolverem-se no magnífico Futuro da humanidade que se superou e construiu uma Civilização «realizada pela alma atlântica». Uma «Civilização universal vivificada pela seiva duma cultura cosmopolita», como acentuaria Dalila nas últimas páginas do opúsculo que recordámos neste ensejo.
A saudosa Dalila Pereira da Costa que se dedicou afanosamente ao mistério da portugalidade que Pessoa tanto escalpelizou. Na senda do Poeta dos heterónimos, Dalila viu Portugal a perecer e edificou a esperança. Fê-lo renascer na “hora”! A “hora” vaticinada pelo autor de Ultimatum a contemplar o Tejo no cais da partida «para além doutro Oceano».
Lisboa, 18 de Maio de 2012
Teresa Bernardino*
* Heterónimo Teresa Ferrer Passos
Publicado na revista Nova Águia, Nº 10 - 2º Semestre 2012, pp. 118-119.
Publicado na revista Nova Águia, Nº 10 - 2º Semestre 2012, pp. 118-119.
A 1ª REPÚBLICA E A IGREJA NO ALGARVE
Este trabalho foi publicado em 2010, ano em que se comemorou o 1º centenário da implantação do regime republicano em Portugal, que punha fim ao regime monárquico instaurado com o nascimento de Portugal, no ano de 1143. Mas o total processo de legalização do novo país só seria concluído em 1179 pelo Papa Alexandre III (conforme era uso na Idade Média em relação aos reis cristãos da Europa).
Depois de uma abordagem histórica do papel da Igreja em Portugal desde o século XVIII, com especial destaque para o estabelecimento do Liberalismo em 1820 e consequentes guerras civis, trata com minúcia as diatribes que a Igreja algarvia defronta após a implantação da República.
“O fado anti-clerical” que percorreu todo o século XIX, atingiria o seu zénite nos anos posteriores ao 5 de Outubro de 1910. O padre Afonso da Cunha Duarte aponta, em particular, o cónego António Caetano da Costa Inglês perseguido pelo regime absolutista-Miguelista. E, logo a seguir, destaca o padre António Barbosa Leão, futuro Bispo do Algarve (desde 3 de Abril de 1908), sobre quem traça alguns dados biográficos preciosos.
Como escreve o padre Afonso da Cunha Duarte “D. António Barbosa Leão sofreu amargamente com a República devido à anarquia reinante” (p.58). A propósito deste condutor da igreja no Algarve, debruça-se sobre os malefícios da Lei da Separação da Igreja e do Estado “que seria responsável pelo controle do Estado sobre o funcionamento do seminário (em Faro), a nomeação de professores e dos livros adoptados”(p.48). O autor conclui este capítulo, realçando que “acabam assim os estudos preparatórios e os alunos (do seminário) são obrigados a frequentar o Liceu”(p.48).
Desvelando os avanços e recuos do anti-clericalismo nas cidades e vilas do Algarve, mostra, com importantes pormenores, “os conflitos pessoais e os distúrbios públicos como as igrejas assaltadas, a presença de arruaceiros nas procissões e algazarras dentro das igrejas” (p.29).
As perseguições a párocos, a desorganização do clero, as prisões de muitos clérigos, a fuga de outros, a ausência de homilias nas missas devido à ignorância de muitos padres, igrejas fechadas pela autoridade, o encerramento do seminário de Faro e a sua substituição por uma escola sacerdotal fundada em S. Brás de Alportel pelo cónego António Caetano da Costa Inglês, são apenas alguns dos contributos para a história da igreja no Algarve.
Livro publicado, em boa hora, pela Casa da Cultura António Bentes de S. Brás de Alportel. A história da igreja no Algarve durante a 1ª República fica assim enriquecida com este acervo histórico sobre os dezasseis anos desta conturbada época em que os políticos se digladiavam em nome da liberdade e da justiça.
5 de Outubro de 2012
Teresa Ferrer Passos
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DO HERÓI "PETER PAN"
Peter Pan, o
herói da obra homónima de J. M. Barrie, o menino que não queria crescer,
conduz-nos a um país imaginário em que mil e uma aventuras o tornam o mito da
eterna renovação ou da recriação contínua. Esta obra para crianças resultou de
uma peça de teatro, estreada em Inglaterra no ano de 1904. Foi depois publicada
em 1911 com o título Peter Pan and Wendy. O tema com um sentido na linha
da futura psicologia analítica de Yung, trata de uma criança que não se
adaptando ao ambiente familiar e social em que vive, procura libertar-se dos
esquemas em que os adultos o querem aprisionar.
Refazer os
sentidos da vida é o objectivo de Peter Pan. Mas o que acontece é que ele só
consegue fugir aos esquemas sociais e imobilizantes dos adultos se, na
liberdade de ser ele próprio, for construindo um mundo pleno de fantasia.
Nesta obra
trabalhada por J. M. Barrie durante mais de vinte anos, a criança torna-se o
herói, sempre a romper com o antes e o depois porque a liberdade vive no
presente. A adversidade e os obstáculos levam o pequeno Peter Pan, personagem
que imortalizou o seu autor, a recusar inserir-se no mundo dos adultos que são
essencialmente rotineiros e bloqueadores da inovação.
O pequeno Peter
Pan possui em si uma imaginação que o obceca e o individualiza. A fantasia está
presente no mundo novo que constrói e reconstrói sem parar. Em Peter Pan,
J. M. Barrie descobre os mais belos valores da infância: a inocência que
guia sem bússola e imuniza do medo; a liberdade que faz ser-se autêntico; a
ignorância do tempo que eterniza e dá a dimensão de um presente sem
limites.
Nesse mundo, o
menino não se preocupa nem com a vida nem com a morte. Nem com o antes nem com
o depois. Aboliu a história, as raízes que o entorpeciam. Assim, Peter Pan brinca
inventando uma realidade toda sua e sem as proibições das pessoas crescidas,
das pessoas que não o deixam ser quem ele é.
As suas
fantasias construídas na inocência nada possuem que se insira em critérios de
mal. Tudo o que defronta nos outros, seja bom ou mau, confronta-o com a pureza
do seu coração. O adulto vive numa realidade objectiva em que tudo é
preconceito, tudo é pré-determinado, mas Peter Pan, “a eterna criança”, vive no
mundo da fantasia que o fascina.
Os adultos
não entendem esse mundo misterioso que a criança constrói e, ao não entenderem,
comportam-se com um autoritarismo que magoa a criança e a coloca numa situação
de não-inserção e mesmo de recusa do real. Em Peter Pan e Wendy, uma
obra longamente pensada pelo escritor inglês James Matthew Barrie, surgia na
literatura um verdadeiro paradigma da literatura para crianças.
A pureza
da criança confrontada com um mundo adulto que adultera, que falseia, que
engana e que tem feito perigar, não raro, a sua própria identidade humana.
Abril/2010
Teresa
Ferrer Passos*
_________________
1 Fernando Pessoa, Sobre Portugal. Introdução ao Problema Nacional, Ática, Lisboa, 1979, p. 223.
* Heterónimo de Teresa Bernardino
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A POESIA INFANTIL, DE NOVO
A sabedoria de um Poeta não
tem idade. Em cada poema nasce uma história a vibrar de sensibilidade e imbuída
de uma cultura assimilada ao longo dos anos, anos de tempestades e anos de
bonanças. Mas, em cada poema para a infância, a arte de contar ganha novos
contornos e esses contornos traçam um mundo de memória, a memória da infância
do próprio Poeta. É neste ponto, que surge a escrita de António Manuel Couto
Viana, um dos Poetas que melhor soube falar com as crianças.
A sua obra dramatúrgica
especialmente destinada a um público infantil transmite um entusiasmo, uma
dinâmica, uma ousadia tal que poderíamos compará-la ao célebre “Peter Pan”, o
menino que não queria crescer. A verdade é que, se crescesse, perderia a alma
rica da sua infância.
Talvez por António Manuel Couto
Viana, ele próprio, não ter perdido, ao longo da sua vida, a alma pura da
criança que foi, continua a ser capaz de dialogar com uma naturalidade
invulgar. Trata-se de uma naturalidade eivada da sua vasta cultura que, desde
os seus tempos no liceu de Viana do Castelo, desenvolveu sem descanso.
A arte de comunicar é uma
constante em toda a sua obra, mesmo até a vasta obra ensaística está por ela
marcada. Esta capacidade de comunicar, ou seja, de se dar ao outro, ao ponto de
se transferir para as suas personagens ou para as suas lembranças, é
impressionante. A arte do diálogo está imbuída de tudo o que, de um modo ou de
outro, o autor vivenciou e continua a vivenciar.
Em cada um dos seus ensaios,
sejam sobre Cesário Verde ou Camilo Pessanha, encontramos múltiplas referências
a seu pai, a sua mãe e irmãs, a seus amigos poetas, ensaístas ou pintores,
sempre como se todos fizessem parte de uma magnífica peça de teatro que tem
como palco privilegiado a própria vida (vejam-se livros como Colegial de
Letras e Lembranças, ou Escavações de Superfície – Estudos e Memórias,
Universitária Ed., 1994 e 1995, respectivamente).
A dramaturgia é a arte daqueles
que gostam de conviver com o outro e não suportam o egocentrismo limitado ao
solilóquio, em que os outros são indiferentes ou um peso a mais, se não mesmo
uma inevitável necessidade. A dramaticidade de A. M. Couto Viana foi um das
suas mais curiosas e incisivas facetas.
A sua poesia e o seu teatro
infantil revelam por outros factores, sobre os quais não vamos alongar-nos,
revelam bem, dizia, o seu alto talento também numa escrita especialmente
destinada à criança. Recordo os livros Versos de Cacaracá (1984) e Versos
de Palmo e Meio (1994) ou as peças infantis Era uma Vez… um Dragão! (1950)
e No Palco do Faz de Conta. Toda uma literatura cultivada com
esmero quer na vertente da poesia, do ensaio, ou do conto (Meias de seda
Vermelha e sapatos de verniz com fivelas de prata e outros contos [ed.
Prefácio, 2003], tornam A. M. Couto Viana um ícone ímpar na literatura
portuguesa da 2ª metade do século XX e dos já quase a finalizar primeira década
do século XXI.
A alma autêntica que reveste a
sensibilidade dos mais pequeninos e que também reveste a daqueles que a sabem
conservar quando adultos, está presente no livro, sobre o qual vou dar alguns
breves traços: Bichos Diversos em Versos (Poesia Infantil), [Texto Editores , Lisboa, 2008] com ilustrações
alusivas de Afonso Cruz.
Todos os poemas são rimados,
cheio de beleza rítmica e de sempre oportuna temática, o que está de acordo com
aquilo a que A. M. Couto Viana já nos habituou, desde os anos quarenta, em
jornais e revistas publicados em Viana do Castelo e em Lisboa (em especial Távola
Redonda).
Desde 1948, ao publicar em livro,
O Avestruz Lírico, o seu primeiro conjunto de poemas, não mais deixou de
dar a lume tantas e tantas obras, num fulgor produtivo de que a qualidade foi
sempre um admirável apanágio. Se estes poemas não apresentavam características
de poesia infantil, neles havia a beleza estética da transparência, que
caracteriza a alma da criança. Aqui estava já bem evidente a alma plena de
pureza intemporal do Poeta de A Oriente do Oriente (1987) e de Café
de Subúrbio (1991).
O livro em referência, Bichos
Diversos em Versos (Poesia Infantil), oferece-nos um conjunto de poemas em
que encontramos histórias de animais que são, em simultâneo, histórias
moralizantes a ensinar sobre o sentido impróprio de alguns comportamentos
humanos, histórias cobertas de ironia, que chamam a atenção da criança mais
desprevenida.
Entre os poemas moralizantes
podemos citar o poema “Vaidades”, em que o tubarão grita a um pequenino peixe
para lhe chamar Barão. Era um peixe mesmo vaidoso do seu tamanho descomunal;
esquecia que a aparência exterior não era tudo; o outro, apesar de ser pequeno,
chamava-se peixe-Imperador! O nome serve, neste poema, para simbolizar que nem
tudo se reduz à sua forma física, era preciso lembrar-se que o interior não era
menos importante. Assim, o grau de nobreza pelo qual exigia ser tratado
tornava-o ridículo por ser tão pretensioso.
Por sua vez, o poema “O Tigre”
refere-se ao defeito da falsidade; o poema “O Cavalo” acentua o valor daquilo
que é natural perante aquilo que o imita e que é uma simulação; “A gaivota”
alude à preguiça; “O Avestruz” é o símbolo do desonesto, daquele que quer
enganar sem que os outros descubram a sua intenção.
No poema “O Rato, o Gato e o Cão”
surge uma cadeia de poderes entre os animais que leva à supremacia do mais
forte, cadeia essa a que não é estranho o ser humano, porque as suas atitudes
não diferem muito da cadeia presente com os exemplos dados. Já “O Dinossáurio”,
“O Gato-Sapato” ou “O Leão” têm um sentido mais fortemente satírico, em que o
autor não poupa as pessoas que assim se comportam.
O poema que se inspira na fábula
de La Fontaine, “A Cigarra e a Formiga” tem a particularidade de introduzir uma
nova personagem, a coruja, símbolo da sabedoria. E o que ela vem dizer é que é
preciso o meio termo, o equilíbrio em tudo aquilo que fazemos. Nem uns só
trabalharem e os outros só se divertirem: deve haver um tempo para o trabalho e
um tempo para distrair; nunca um deverá anular totalmente o outro.
No poema “A Raposa” vemos A. M.
Couto Viana lembrar a célebre novela de Bernardim Ribeiro com o título Menina
e Moça. É a raposa a lembrar a expressão “menina e moça” com a qual ele
inicia a sua obra. Eis o exemplo de um poema didáctico para familiarizar a
criança com os autores clássicos. E, a finalizar, lembramos o poema “O Camelo”
em que se realça a tradição da consoada natalícia ou “O Peru” em que se faz
também apelo a essa tradição.
De chamar a atenção é o facto de
cada poema evidenciar bem a veia dramatúrgica e, em sintonia o seu talento de
poeta essencialmente lírico. Neste livro tão bem ilustrado por Afonso Cruz
vemos renascer a poesia para a infância que, tal como a dramaturgia infantil a
que A. M. Couto Viana dedicou grande parte da sua vida, é igualmente e sempre
uma poesia (e também dramaturgia) para os adultos meditarem e daí tirarem
ensinamentos para a sua própria vida que não deve perder os traços mais
importantes da personalidade da criança.
7 de Setembro de 2008
Teresa Ferrer Passos
Fonte: Internet, www.harmoniadomundo.net (8/9/2008),
jornal A Aurora do Lima
(Viana do Castelo), ano 153, 17/9/2008.
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REFLEXÕES SOBRE «SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO»
«Quatro velozes dias cedo serão
noite / E as noites, sonhando, escoarão o tempo»[1], diz-nos a personagem Hipólita, noiva
de Teseu, rei de Atenas, em resposta ás suas palavras sobre a festa nupcial dos
seus faustosos esponsais. Nestas palavras se encerra todo o mistério do tempo.
Ao longo destas páginas, escritas provavelmente entre os anos de 1594 e 1596,
William Shakespeare inscreve toda uma acção dramática que se processa como se o
tempo, esse maravilhoso invólucro da vida dos humanos, tivesse nele teias
sempre bem urdidas para alterar o rumo das vontades e, mais do que isso,
tivesse, a cada instante, novas identidades escondidas criadoras de novos
enredos para cada uma das personagens da existência humana.
É nessa conjuntura temporal de
inesperados sentidos e de imprevisíveis desvios, que se vão forjando os
acontecimentos, que se viram contra si próprios e que se interpõem às decisões
e aos mais firmes sentimentos que se instalam no coração de mulheres e de homens
que vêem os seus desígnios torpedeados, como se forças de inexplicável poder se
interpusessem entre eles.
O mistério da condição humana
está bem patente neste trepidante drama concebido com uma argúcia psicológica
que é transmitida a cada uma das personagens, quer sejam de certo saber, quer
sejam rudes artesãos ou pertençam ao mundo secreto do maravilhoso imaginário do
pensamento mais original e de divina descendência. Aqui se integram os heróis,
as ninfas, as fadas, e tantas outras construções da fábula de tempos idos.
Juntam-se a estes, essas fragilíssimas figuras dos pequeninos elfos, os gnomos
mágicos, as musas da inspiração, os centauros do poder ou as sereias de beleza
ímpar. O mistério que torna estranha a realidade, cria mil e uma faces ao mundo
da consciência humana e do tempo.
Como diz Hipólita (talvez ela
seja uma réplica da mitológica Antíope, a amada de Teseu), os dias são breves,
ante a noite que os cobre com os seus enigmas, as suas ciladas, as suas
artimanhas inesperadas. É nessas noites da existência que os sonhos se expandem
e atravessam, quase sem se fazerem pressentir, os dias. Os dias, que passam,
sem parar, por cada ser, são armadilhados nos seus tentáculos súbitos. As
melhores e as mais reflectidas decisões são contornadas e envolvidas em
obstáculos de aparência intransponível. Essas forças, representadas pelas
estranhas figuras das fadas ou dos elfos ou dos gnomos, inspiradas no
imaginário da Antiguidade Clássica, Medieval ou de povos com religiões
animistas, afogam os dias dos humanos em gigantescas marés de vazio ou em
grotescas cavernas de infortúnio.
São os dias devastados pelos
sonhos nefastos que esfacelam os amantes, atormentados pelo espanto de
situações abruptas, palavras incongruentes e amargas que lhes dilaceram os
sentimentos mais puros e audazes. Assim acontece, em Sonho de uma Noite de
Verão, com Helena que ama Demétrio que, por sua vez, ama Hérmia e esta que,
amando Lisandro, tenta fugir com ele para não serem separados. Mas, devido a
uma “poção mágica”, são afastados por Robin, a mando do rei das fadas que, por
ciúmes, quer vingar-se da rainha, que recusava dar-lhe para seu pajem a bela
criança que ela amava, após tê-la mandado raptar a um rei indiano.
Todos os desencontros dos amantes
têm por trás algo de pérfido, de improvável, de mal-intencionado. Cada nova
situação resulta de um destino que alguém manipula, mas desconhece-se quem o
faz. Serão fadas maléficas ou Elfos minúsculos e vingativos? Serão os
invisíveis e poderosos habitantes dos lagos, dos bosques ou das montanhas?
Serão os que mandam e, com o seu grande poder, esmagam os mais débeis e
incautos? E tudo aparece inserido num acaso obscuro, num destino cruel e ao
qual nem a paixão mais impetuosa pode escapar. Como diz Helena “o amor pode com
a alma, não com os olhos, ver. / Daí o Cupido alado a cego aparecer (…) Por
isso se diz do Amor que é uma criança, / pois na escolha é tantas vezes
enganado”[2].
E a ingénua Helena, ao escutar a
voz amorosa, enfim, de Lisandro agora já apaixonado por ela ao ter ingerido a alquímica
bebida, sente-se insultada pelas suas palavras de amor inesperado. Por sua vez,
Titânia recebe semelhante feitiço que a faz amar um artesão, Fundos,
transformado em burro. O ridículo cai sobre Titânia, a rainha das fadas. E
outro dos amantes, Demétrio, que rejeitava Helena e amava Hérmia, agora, por
idêntica magia, transmuta o sentimento de amor por Hérmia numa recusa em a
amar. Por seu lado, Hérmia não entende a razão de Lisandro ter deixado de a
amar, após tantas provas de fidelidade.
Em suma, todos se sentem
enganados, ludibriados, vítimas de súbitas mudanças sentimentais. Ninguém está
seguro. Ninguém pode já confiar. A realidade parece, por vezes, deixar de o
ser. Parece-se mais com os sonhos de noites de verão, noites em que “nevoeiros”
cálidos se abatem sobre as pobres criaturas que repousam na confiança e na
lealdade com aqueles que amam. Tudo parece tão estranho, tão absurdo mesmo. A
realidade mostra-se irreal, impossível mesmo.
Neste Sonho de uma Noite de
Verão, Shakespeare oferece-nos as simbólicas e mágicas “poções” que
imbuíram uma humanidade, enchendo-a de sofismas, de imprevidência, de loucura.
O autor utiliza a personagem Oberon, o rei das fadas, e o seu serviçal Robin,
para todas as maquinações que criam o ridículo, que constroem a ilusão do amor
nos seres sem sombra de malícia e que fazem da vida um contínuo alcatruz, ora a
vazar o bem, ora a encher-se de mal. Por isso, Hérmia diz: “Tudo parece duplo”[3]. E Demétrio: “A
mim parece-me / Que ao dormirmos sonhamos(…). / E entretanto contemos nossos
sonhos”[4].
Também Fundos, o artesão que dirige a pequena peça, de intenção popular, para
divertir os convivas, após o jantar do casamento de Teseu, não deixar de
pronunciar: “Tive um sonho para além do que se pode dizer que sonho era”[5].
No Acto 5 (Cena 1) desta
belíssima peça teatral, Shakespeare explicita toda esta engrenagem mental ao
afirmar através da personagem Teseu: “Os olhos do poeta, em alvo postos, / Vão
do céu à terra e da terra ao céu; / E como a imaginação arquitecta / O desconhecido,
a pena do poeta / Dá-lhe formas, e confere ao que é nada / Uma existência
própria e dá-lhe um nome. (...) / Ou à noite, se o medo imaginar, / Fará dum
arbusto um urso a espreitar”[6]. Nesta intervenção está inscrita a
própria identidade do autor de Sonho de uma Noite de Verão, uma das mais
bem concebidas comédias de todos os tempos.
Como diz a Professora Maria
Cândida Zamith, a excelente tradutora desta pérola da literatura dramática
inglesa, “trata-se de uma trindade de mundos fantásticos”[7]. E, mais adiante, Maria Cândida
Zamith sublinha, bem oportunamente, que se trata de “ um mundo sobrenatural
povoado de toda a espécie de seres inspirados — e grandemente alterados — a
partir de todos os imaginários de todos os tempos e de toda a Europa”[8].
Sonho de uma Noite de Verão é
uma obra em que cómico e trágico se entrelaçam. Criando um mundo cheio de
novidade, Shakespeare consegue erguer, numa caótica harmonia literária, um
mundo de sonho e/ou de sonhos, de portas entreabertas para sedutoras máscaras.
E, esse mundo, sem mostrar o fim do caminho, abre-se, como um feitiço entre
muitos outros feitiços, à beleza de imprevistos e emocionantes
caminhos.
25 de Julho de 2008
Teresa Ferrer Passos
[1] William
Shakespeare, Sonho de uma Noite de Verão (Obra Dramática Completa),
Campo das Letras, 1ª edição, 2002, p. 45.
[2] Ob.Cit., p.53.
[3] Ob. Cit.,
p.115.
[4] Ob. Cit.,
p.115.
[5] Ob.Cit.,
p.116.
[6] Ob. Cit., p.
119.
[7] Ob.Cit., p.31.
[8] Ob.Cit.,
p.33.
Fonte: Internet, www.harmoniadomundo.net
(25/Julho/2008); Jornal Poetas & Trovadores ,
nº 47, 3ª série, Outubro / Dezembro de 2008.
_______________________
UMA ESTRANHA HISTÓRIA DE ALMA TRÁGICO-MARÍTIMA ?
Autora de uma bibliografia que
privilegiou a análise do pensamento místico, esotérico e religioso dos poetas e
pensadores portugueses, sobretudo dos séculos XVI e XX, Dalila Pereira da Costa
acaba de completar noventa anos. Com uma vida dedicada ao estudo da "alma
portuguesa" podemos considerá-la uma pensadora do «enigma português», como
diria Francisco da Cunha Leão.
Os aspectos do mito, as
maravilhas do símbolo, o oculto do inconsciente colectivo portugueses, foram
motivo da maior parte das suas obras. Poetas da envergadura de um Teixeira de
Pascoaes ou de um Fernando Pessoa, dramaturgos como Gil Vicente, transfiguram
em poemas e em diálogos de sacral virtuosismo, os grandes cultos matriciais da
Pátria portuguesa.
O espírito de Mircea Eliade ou de
Erich Neumann renasce nas páginas emocionadas pelas imagens da
"saudade", da "viagem", da "alma". Elas regressam
ao nosso convívio nas páginas da autora de A Força do Mundo (1972) ou de
Da Serpente à Imaculada (1984) ou ainda de Mensagens do Anjo da
Aurora (2000), páginas escritas por esta escritora a viver na cidade onde
nasceu em 1918, a cidade do Porto, mas em que, um dia, atravessou o Atlântico,
rumo à cidade de S. Paulo, no Brasil.
Sem o cansaço próprio da sua
idade, Dalila Pereira da Costa publicou há apenas dois anos um livro notável
que titulou As Margens Sacralizadas do Douro através dos Vários Cultos
(Lello Editores, Porto, 2006), uma obra em que aborda a importância do grande
rio, que entre os penhascos montanhosos chega ao mar com a ousadia e a força
cósmica de um gigante.
Nesse rio percorrido pelos
navegantes de Quatrocentos que, nas suas margens encontravam as matérias-primas
para construir as naus e as caravelas e que, na sua robustez, descobriam a
coragem para afrontarem os mares e chegarem a novos e tão diferentes povos. Nesse
rio magnífico que, nas suas margens viu crescer uma cultura gentílico-tribal,
em que o "arquétipo da Grande Mãe" criou as raízes para
a formação de uma Mátria do tamanho do Mundo.
O Universalismo e o tribalismo
estão impressas nas margens do Douro. Estão também nas centenas de gravuras do
rio Côa. Santuários de uma Origem inesquecível, aí estão. Uma Origem primordial
inscreve-se nas gerações que no seu mais fundo subconsciente transmitem os
genes do tempos e dos ancestrais costumes dos povos.
Nas margens do Douro e do Côa,
Dalila Pereira da Costa bordeja as matrizes espirituais deste povo português, a
construir uma Saudade única na hora da partida e nos instantes do regresso. E
tudo isto, a viver nas profundezas psíquicas de uma religiosidade que misturou
as práticas dos xamãs com a fé dos cristãos.
A sacra missão foi-se tecendo nos
sons da Língua Portuguesa. E edificou-se desde os ermitérios às aventurosas
viagens, viagens de procura e de encontro, de rituais e de fé a envolverem o
ser daqueles que partiam. Todo este mundo arquétipo, ideal e límpido, é
criticamente narrado e interpretado por Dalila Pereira da Costa.
O culto de uma religião de
asceses ergue-se, soberbo e soberano, nas mágoas daqueles que ficavam, velando
uns, orando outros, pelo ideal distante, mas nunca esquecidos das edénicas
moradas da cidade a perder-se de vista e do mar dos navegantes, a ganhar-se,
palmo a palmo. E todos saíam da barra do rio sem olhar para trás, com medo de
ficar.
Lisboa, 7 de Maio de 2008
Teresa Ferrer Passos
Fonte: Internet, www.harmoniadomundo.net
(7/5/2008).
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A POLÍTICA E O MITO EM FERNANDO PESSOA
A
ausência de grandes teóricos do pensamento político é uma das maiores falhas da
história do povo português. Este facto foi lesivo da construção de uma política
bem alicerçada e não em deriva, conforme os ventos e as marés de interesses e
oportunismos imediatos. Portugal só brilhou quando surgiu um D. Jerónimo
Osório no século XVI, um D. Rodrigo da Cunha no século XVIII ou um Almeida
Garrett no século XIX.
Nos
princípios do século XX, será Teixeira de Pascoaes a escrever a Arte de Ser
Português (1915) e Fernando Pessoa a tentar fazer uma teoria sobre
Portugal, conforme os seus papéis dactilografados ou os opúsculos dados a lume
nos constantes momentos críticos da política portuguesa.
Fernando
Pessoa sentiu esses problemas talvez mais especialmente, porque tendo vivido e
estudado numa África do Sul de cultura inglesa até aos dezassete anos de idade,
olhou Portugal como um estrangeiro que, ao desembarcar em Lisboa, observa os
costumes e os comportamentos sociais com uma visão mais larga e mais funda.
Estas
considerações vêm a propósito da leitura de um ensaio bastante curioso da
autoria de Brunello de Cusatis recentemente publicado por Caixotim Edições,
intitulado Esoterismo, Mitoginia e Realismo Político em Fernando Pessoa.
Este
estudioso da literatura e da língua portuguesa, é professor de Literatura
Portuguesa e Brasileira na Universidade dos Estudos de Perugia, em Itália.
Tendo publicado ensaios sobre as obras de Antero de Quental e Fernando Pessoa
nas suas vertentes literária e política editados no seu país, acaba agora de
ver uma das suas deambulações sobre Fernando Pessoa publicada pela Caixotim,
conceituada editora portuguesa, com sede na cidade do Porto.
Brunello
de Cusatis faz uma análise objectiva de problemas levantados pelo pensamento
político do autor da Mensagem. Para ser mais concreto, divide o seu ensaio
em duas partes: «Contemplação», em que aborda os aspectos míticos assim como os
de natureza esotérica de muitos dos escritos do Poeta, e «Actuação», em que
mostra a sua intervenção através de opúsculos ou artigos de revista.
Releva,
desde logo, a importância dada por Fernando Pessoa ao mito na história do Povo
português, o contínuo recurso ao sebastianismo, a intuição de um Quinto Império
para realizar Portugal (e a própria Europa), a ausência de fidelidade aos
valores nacionais, designadamente com o internacionalismo da Maçonaria.
Neste
contexto, Brunello de Cusatis acentua o papel das ciências ocultas no
desenvolvimento do pensamento político do Poeta, referindo-se, especificamente,
à sua nota biográfica escrita em 30 de Março de 1935: «Fiel à tradição secreta
do cristianismo» e «iniciado nos três graus menores da (aparentemente extinta)
Ordem Templária em Portugal(...)». E conclui: «Aqui, a atitude “Contemplativa”
de Pessoa (...) que se definirá em carta a Adolfo Casais Monteiro, como um
“nacionalista místico, um sebastianista racional”» (p.30)
Captar,
pelos pontos abordados, o(s) sentido(s) do pensamento político de
Fernando Pessoa, eis a meta a atingir neste trabalho levado a cabo por Brunello
de Cusatis: o Poeta dos heterónimos era essencialmente um espírito atormentado
com a decadência da Pátria. Decadência endémica que ia vendo nos dois regimes
que a sua vida de juventude viveu e a de adulto atravessou.
Os
erros do Constitucionalismo monárquico repetiam-se com o regime
republicano. Outros erros foram cometidos pelos autores da revolução de 28 de
Maio de 1926. Esta evolução política teria marcado, segundo Brunello de
Cusatis, todas as mudanças de pensamento político de Pessoa. Nos escritos
dispersos, publicados ou inéditos, dos quarenta e sete anos da sua vida, há um
denominador comum: o sentimento patriótico.
Portanto,
não se trata de uma personalidade fragmentada e incoerente, mas antes de uma
personalidade que punha os interesses da nação acima da partidocracia do
Constitucionalismo Monárquico e do parlamentarismo republicano. O sentido de
Pátria era, na verdade, muito vincado no Poeta que colaborou, com tanto
entusiasmo, no movimento (e revista) da «Renascença Portuguesa» (1912).
É
precisamente a Ordem dos Templários que se lhe afigura ainda um bastião da
força da tradição e dos valores portugueses. E, como efectiva «fundadora de
Portugal», devia ser também a «condutora de Portugal, não somente do passado
mas também, e sobretudo, do futuro» (p.30).
Segundo
Brunello de Cusatis, há que realçar um Fernando Pessoa em busca de uma mística
e de um mito, um grande mito que daria consistência à nação, sem a
desnacionalizar, como acontecera com as revoluções liberal ou republicana.
Na
segunda parte, que intitulou «Actuação», Brunello de Cusatis nota, acertadamente,
que «a vida social e política de Portugal entre 1910, ano da implantação da
República e 1935, ano da morte do Poeta, foi caracterizada por contínuas
e intrincadas mudanças de regime e de governo, golpes de estado, agitações e
revoluções» (p.68).
Esta
fragmentação da coesão nacional, a desnacionalização provocada pela cedência a
valores de outras nações, que não seriam prejudiciais se fossem universais,
esvaziava o Povo português dos seus fundamentos mentais edificados com a
cruzada cristã (papel relevante dos Templários) e a consequente criação da
nacionalidade no século XII e a atingirem o ponto mais alto no século XV, com
os Descobrimentos, que lançariam a Europa numa verdadeira Idade de Ouro.
As
«desaprovações» de Pessoa, como escreve Brunello de Cusatis, reflectem,
sobretudo, o seu ardor patriótico e, ao mesmo tempo, os seus intuitos
universalistas: «Era o seu amor patriótico, o julgar o seu país
desnacionalizado e retrógrado que o levariam, nos planos político e económico,
a encontrar e propor soluções, apenas na aparência entre si contraditórias»
(p.56). Assim, o autor deste incisivo ensaio considera as polémicas nascidas do
pensamento político de Fernando Pessoa, entre as quais destaca a travada entre
Jacinto do Prado Coelho e Alfredo Margarido, como desnecessárias.
«O
acesso ao poder dos homens mais competentes para exercê-lo» (p.38) devia pautar
a vida política de um país. Por isso, «o liberalismo de Fernando Pessoa
reflectia fundamentalmente (...) o seu aristocratismo (no seu sentido etimológico
de governo dos melhores) antidemocrático, o seu extremismo
individualista, a sua recusa do socialismo e, portanto, de todos os
centralismos estatistas» (p.57).
Como
muito claramente afirma Brunello de Cusatis, Fernando Pessoa, «da Raça dos
Descobridores», «despreza o que seja menos que descobrir um Novo Mundo!»
Para
o fazer de novo, seria preciso «um grande mito nacional» e, a Portugal, não
faltavam antecedentes históricos. «A mitogenia portuguesa era demasiado rica»
(p.14) para não ser possível fazer um «renascimento» de Portugal. Como diria
Pessoa, «é a hora», ou estaremos ainda longe desse tempo de recriação da
Pátria?
Teresa Ferrer Passos
Fonte: «A
Política e o Mito em Fernando Pessoa», Suplemento «das Artes das Letras» in O
Primeiro de Janeiro, 13/6/2005; Internet, www.harmoniadomundo.net .
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FERNANDO DE PAÇOS,
UM POETA A ESCREVER NO FUTURO*
«Ao
fundo, o Lima corria / E, lira de água a tremer,
/
Os seus versos repetia»
Teófilo
Carneiro
«Vede-as
[às suas Rimas] com mágoa, vede-as com piedade /
Que
elas buscam piedade e não louvores»
Bernardim
Ribeiro
Publicado
em 1944, o livro de poemas Fuga surge como a rampa de lançamento de
Fernando de Paços1
(23/11/1923-18/6/2003). Com pouco mais de vinte anos, o autor reunia,
subordinado àquele título, doze poemas. Era o terceiro livro da colecção Poesia
Nova. Assim se chamava porque pretendia apagar qualquer possível elo de ligação
com alguma da poesia que se publicava na época.
O
lema da Colecção era, significativamente, a «Arte pelo Todo». Esta expressão
procurava sublinhar que a poesia não se confinava à estética, mas era movida
pelo sentimento, pela emoção. O exercício da poesia exigia toda uma estética
formal, sem descurar, em simultâneo, a expressão das ideias.
Por
esse tempo, vivia Fernando de Paços em S. João d’ Arga em Viana do Castelo. Um
belo lugar serrano a elevar-se frente à cidade. Aqui viveu a infância, a
adolescência e a juventude até aos vinte e tal anos, na casa de seus pais. Com
uma pequena quintinha, que se cobria, então, de vinhedos e frondosas árvores de
copas fustigadas, tantas vezes, pela chuva miudinha e abraçadas pelas brumas e
pelo nevoeiro, até no Verão. Ao lado, havia (e ainda hoje lá está) uma austera
capela em pedra granítica e, um pouco adiante, a casinha onde Camilo Castelo
Branco (não excluiríamos sombras de Camilo em Fernando de Paços…) viveu no ano
de 1857.
Arga,
um pequeno lugar no caminho que conduz ao templo neo-bizantino consagrado ao Sagrado
Coração de Jesus no alto do Monte de Santa Luzia, sobranceiro a Viana do
Castelo. Arga, cuja fundação remonta à construção do mosteiro de S. João d’
Arga por S. Frutuoso, no século VII. Para este lugar paradisíaco e de silêncios
secretos, espreitava o rio Lima, ao fundo, a espraiar-se depois frente às ondas
brancas de espuma dos longos areais. E os perfumes de maresia e de pinheiral
entrelaçavam-se nos trilhos sinuosos da serra.
Nesta
beleza nostálgica, suave e também agreste, cresceu a sensibilidade poético-mística
de Fernando de Paços. Fecundou-a uma espiritualidade profunda, semelhante à de
um certo Fernando Pessoa. Mas, a ela não foram também estranhas as
manifestações religiosas da obra de um José Régio, nascido nessa tão próxima
Vila do Conde, ou as raízes telúricas de obras como Marânus de Teixeira
de Pascoaes, a escrever nos não muito distantes vergéis de Amarante. Não sendo
um ortodoxo partidário do presencismo regiano, nem um discípulo da forma
artística de Pascoaes, escutou-os com atenção, seguindo, contudo, numa linha de
rumo bem distinta e própria da sua personalidade. E se Fernando de Paços foi
fiel à frase de José Régio, «literatura viva é aquela em que o artista insuflou
a sua própria vida e que por isso mesmo passa a viver de vida própria»2, afastou-se em
absoluto, de acordo com o lema da Colecção em que se inseriu Fuga, da
poesia social dos neo-realistas, seus contemporâneos.
Dinamizador
do Centro Cultural da Juventude de Viana do Castelo, Fernando de Paços (também
conhecido por Fernando Zamith), colaborou com entusiasmo no seu órgão Seiva
Nova, suplemento literário do jornal Notícias de Viana. Aí veio a
publicar um conto, um ou outro artigo sobre a moderna poesia portuguesa e
alguns poemas. Incentivador entusiástico deste projecto literário, escreveria o
poeta de S. João d’Arga, em Outubro de 1942 (Seiva Nova, nº6):
«Rasgaram
o véu negro que tinham sobre a fronte,
E
viram um ideal erguer-se no horizonte!
Correram,
para ele, de braços abertos,
E
o novo Sol, juntando-os contra si, volveu:
–
Meus filhos, sois libertos!…
(…)
Ó
Juventude heróica, o teu vigor
É
como a Seiva Nova dum arbusto em flôr!…»
Dois
anos depois da publicação deste poema exortativo, Fernando de Paços dava à
estampa Fuga. Pequeno livro, em função do número de poemas publicados.
Mas, não pequeno livro, em função da arte com que transmitiu a emoção em que se
envolviam os seus versos. Desde o primeiro poema, que titulou «Momento», o
poeta revela uma inesperada originalidade. As suas tonalidades artísticas
apresentam-se eivadas de pureza de sentimentos. Fiel às cadências, aos ritmos,
à musicalidade das rimas, encontra o ponto certo da melodia. A harmonia verbal
é uma das características de todos os seus poemas. De um rigor acentuado na
imagética, enriquece-a com o seu pensamento rebuscado. Como se assemelham os
seus versos àquelas brumas entre os pomares e esses bosques solitários, onde,
cedo, meditou sobre a vida e o mundo. E começava a escrever toda uma poética de
interrogação. Questionava-se a si próprio, quase a cada momento. Num espanto e
numa comunhão, escrevia os seus versos envolvendo-os de trocadilhos, antíteses
e metáforas.
Usava
as palavras como um mago que quer trazer ao de cima das sílabas, os pensamentos
mais recônditos, sem lhes retirar o secretismo. Em simultâneo, avançou com
frases libertadoras das amarras da linguagem, tantas vezes, enganadora.
É
o caso do primeiro verso de «Momento»:
«Portas
fechadas a desejos incompletos».
Fernando
de Paços começava o poema, vendo-se já com as portas fechadas e, os seus próprios
desejos sentia-os como se fossem, continuassem a ser, incompletos. Incompletos,
palavra estranha referindo-se a um sentimento (o desejo), porque parece querer
dizer que nem sequer ele próprio imaginava os seus desejos de modo concreto.
Não os conhecia plenamente e, afinal, sabia que estavam algures dentro de si.
Ou temia formular mesmo um desejo incompleto? Não poderia ferir alguém, se
esses desejos fossem completos? E reforçava-se esse tom introspectivo nos dois
versos que a seguir se transcrevem:
«Os
corações inquietos
Como
se fossem um livro proibido de se ler (…)»
Usando
o plural, Fernando de Paços mais uma vez tentava tornar vaga a expressão do
sentimento. A inquietação que habita o coração surgia ao poeta como que
indefinida, quase apagada. E nele eclodia só à custa de uma linguagem quase
proibida de ser entendida, semelhante à de livros proibidos. Em suma, o que é
proibido de se ler é o seu coração. Proibido de se ler mesmo por ele próprio.
Logo, a metáfora e a analogia a jogarem lado a lado. Isto mesmo vemos no poema
«Elegia Vaga», quando o poeta dizia que
«O
que me anda ausente
Desfaz-se
em fantasia…
Enquanto
um roxo poente
De
mim, longínquo, principia».
E
acentuou, no mesmo poema:
«Tenho
uma alma anónima de alma
No
som do campo eu sinto
A
lida e a calma
Do
que não descubro»
E
nos poemas «Crepúsculo» e «Variante», os versos acentuam esta vertente
enigmática que tende à omissão das imagens e não à sua explicitação plena, o
que define bem o poeta de Fuga:
«Montes
quietos como vultos
Apagados
na penumbra de outros montes
Que
fito
E
temo como se fossem
Os
meus desejos ocultos (…)»
Outro
exemplo:
«E
qualquer dos meus dias mais
Indefinidos,
E
do mesmo anseio vago,
Se
perde nos sentidos
Das
calmarias naturais
Que
trago»
Ou
ainda:
«O
silêncio da paisagem verde
Emudeceu
a voz que tinha
E
eu penso se será assim que sou»
Versos
paradigmáticos do estilo presente em todo este livro. É a ausência de si que se
transforma em fantasia poética; é aquilo que não está no mundo da consciência
do poeta que se diz, que se expõe. Afinal, o que permanece escondido na esfera
do inconsciente, ou seja, aquilo que não está sujeito à vontade premeditada, é
que toma, aqui, a forma poética.
Fugindo
aos intuitos conscientes da maioria dos seus contemporâneos, Fernando de Paços
cria um espaço semelhante ao de uma poesia do não, e com esta expressão
pretende-se significar o espaço de uma poesia que se alimenta não
essencialmente do visível, mas do invisível ao próprio ser interrogante de si,
interrogante da vida.
No
poema «Mensagem», o poeta interrogou-se:
«(…)E
assim cresci, lírico e vago…
(Porque
destruí inglórias atitudes
E
dei mensagem tão vã?)»
Mais
adiante, no poema «Fuga» (que deu o título a esta recolha), sublinhava, num
acento mais fundo:
«Há
sustos
Dentro
do meu céu fechado»
E
no poema «Resgate» confessará, numa dupla constatação:
«Quanto
infinito vago
Em
vão tentei olhar…»
Este
denominador comum revela que o poeta questionava antes de tudo o seu próprio
eu, sem chegar a encontrá-lo. Estamos perante uma poesia psicológica vinda do
eu do poeta, vinda de intuições que, afinal, teme, pois são todas elas
«desejos ocultos de infinito». Mas que, não obstante, procura decifrar.
Nunca o alcança porque tudo nele era oculto, a começar pelos seus desejos («ocultos»
e «incompletos»). E estranhava-se a si próprio. Não se via à altura
desse infinito, que buscava em imagens a fecharem-se à dilucidação daquilo que,
afinal, só poderia ser o impenetrável sagrado. Ou essa interioridade obscura,
que se lhe afigurava intransponível, distante demais...
Dois
anos antes, no suplemento literário «Seiva Nova» (nº 8 datado de 7/11/1942) do Notícias
de Viana, Fernando de Paços considerou como um erro da poesia sua
contemporânea, a «ideia sair como ideia e não como poesia». E, precisamente,
porque «na poesia há necessidade de ritmo e de musicalidade» (nº12 de
9/1/1943). Mas, mais adiante, volta a revelar o seu pendor «sfumato», ao
definir a poesia como uma «vibração de sons vagos e de símbolos posteriores».
Neste
seu livro de estreia esta definição tornava-se uma evidência. Assim, em Fuga,
o poeta transmitiu-nos o seu ser nebuloso, melhor dizendo, todo feito
de bruma. Fernando de Paços entregava-se à palavra com a
autenticidade das profundezas inóspitas da alma que não consegue encontrar
dentro de si, a não ser como algo que parece excessivamente longínquo por se
possuir tão próximo (ou dentro de um nós indefinido e penumbroso).
Poemas
bem ao estilo de Fuga, viriam a ser publicados por Fernando de Paços na
revista Távola Redonda (1950), onde pontificavam, em sintonia com ele,
já a viver em Lisboa, António Manuel Couto Viana e David Mourão-Ferreira e Luis
de Macedo.
Jacinto
do Prado Coelho escreveria no nº19/20 da revista que «o movimento da Távola
Redonda (…) foi uma bela manifestação de auto-análise e de consciência
estética, ao serviço – como queria Baudelaire – da “imaginação”, isto é, do
lirismo». Estas palavras bem se poderiam aplicar ao poeta de Fuga. A
propósito, lembremos uma passagem do poema «Entanto» publicado por Fernando de
Paços em Távola Redonda (Fasc.2, 1950):
«Vivemos
sós nesta longínqua esfera,
enigmáticamente,
nesta
esfera fria
Não
saberemos nunca da esperança
a
irrealizada promessa
apetecida…
Na
bruma se desfez sua voz mansa…(…)»
Recordemos
também o poema «Regeneração» que acaba por rejeitar o próprio título (Ibidem,
Fasc.5, 1950):
«Viver,
ainda viver! Vão-me fugindo,
Sinto
que vão fugindo, os meus brinquedos
Os
meus sonhos, até os meus segredos,
O
calor dos meus dedos…Tudo findo».
O
poeta, dominado pela angústia da perda ou do abandono, dividido entre a ânsia
de viver e a saudade do vivido, atormentado pela incógnita da sua identidade e
pelo sentimento daquilo a que chamou «peitos vazios de certezas»,
afinal, esse poeta esteve sempre presente no Fernando de Paços autor de Fértil
Jardim (1953), Segundo Dilúvio (1963) e Jangada Aérea (1995).
Este último, com um quase inexplicável hiato cronológico em relação ao seu
terceiro livro… Tal facto, pouco consentâneo com a envergadura do poeta,
justificou-o ele, ao dizer que já tinha dito tudo. E que havia mais a dizer, se
ele era o mesmo, sentia a mesma angústia perante esses que «nas
encruzilhadas do Mundo, vivos… ou mortos giram» (poema «Momento» de Fuga),
as mesmas interrogações e as mesmas incertezas «porque entre as ondas e a
bruma sempre, sempre, fugirei…» (poema «Longe» do mesmo livro),
cinquenta anos depois de publicar esse livro talentoso a que chamou Fuga?
Num
salto para o abismo, o poeta brumoso, estudante do liceu de Viana do
Castelo desses já distantes anos 40, o poeta que deixou de escrever poesia
porque «já tinha dito tudo», é o poeta do ano 2003, com setenta e nove anos,
agora a silenciar o sofrimento que se afirma no corpo doente. Espera na
ausência do som, desse som a falar. O silêncio. Nada a dizer. Está tudo dito. E
sofre num silêncio de cumplicidade com o seu próprio sofrimento. O sofrimento é
uma negação de si. Doente, e negando confirmá-lo. Sabe, como aos vinte anos,
que
«Estará
na praia, vazia, a minha galera,
Num
dia de bruma, num dia de bruma,
À
espera, à espera…»
Como
«viver, ainda viver!». Que deve esperar? Ainda esperar? E para quê? E
como? E pensa, talvez, como há cinquenta anos, no poema «Fomos cânticos
serenos» (Távola Redonda, Fasc.2):
«(…)
Fomos cânticos serenos,
tantas
flores de tantos ramos.
Infantis,
simples, pequenos…
Porque
o fomos? Que seremos?
Que
somos? Para onde vamos?»
Panóplias
de interrogações e de fugas, como outrora, nos tempos de Viana? Numa
interioridade de susto, num terror de ser mais uma culpa do que uma fatalidade,
silencia o sofrimento e a dor silencia. Ninguém quer assustar. A ninguém quer
perturbar o sossego, a quietude dos tempos. Tempos difíceis.
E,
assim, no fim da vida, ainda a identificar-se com esse jovem de vinte anos,
esse jovem em busca de uma nova poesia e a erguê-la como uma «seiva»
revigorante e aniquiladora, a entoar os versos do seu poema «Intervalo»
inserido em Fuga:
«Parando,
esquecido e longínquo,
Enquanto
os movimentos enfraquecem…
Tardios
movimentos (…)
Ide,
sob o ocaso das sombras
Do
meu vazio
E
vagaroso
Terminar…»
Nesta
memória do poeta Fernando de Paços, de talento ofuscado por uma humildade rara,
lembremos o poema-vaticínio.
Com
mágoa e saudade, a memória destes versos de Fuga:
«(…)
Senhor! Senhor! É a hora!
Ei-lo,
o meu corpo nu.
E
agora
Crucifica-o,
Como
se foras Tu»
A
hora soou. Nove da manhã. Dia 18 de Junho.
Rosas
aveludadas e com espinhos, tombam na campa do poeta.
Dias
depois, qual cruz inesperada no pequeno jardim de sua casa… Dois altos
pinheiros envoltos em viçosa hera, que tanto gostava de olhar, talvez na
lembrança da sua S. João d’Arga… Um tronco do pinheiro envelhecido de
súbito, tomba. Soara a hora... A hora da morte do poeta…
Mas
a Fuga ressuscita-o, a testemunhar ainda o autor dos seus versos…
Teresa Ferrer Passos
1
Pseudónimo de Fernando Zamith de Passos Silva.
2 Artigo
de José Régio «Literatura Viva», Presença, nº1, 1927.
Fonte: Teresa Ferrer Passos, «Fernando de Paços, um Poeta a Escrever
no Futuro», Cadernos Vianenses, Câmara Municipal de Viana do Castelo,
nº35, 2004; Internet, www.harmoniadomundo.net
; A Aurora do Lima (Viana
do Castelo), ano 153, 22/10/2008.
_______________________
A IMPRENSA E A POESIA INFANTIL
Algumas
considerações sobre a revista infantil CAMARADA
«Em
busca da genuína alma da criança foram dados à estampa na revista infantil Camarada
(1958-1965), rubricas especialmente dedicadas à poesia.
Esta
revista fora, em anos anteriores(1947-1951), dirigido pelo poeta António Manuel
Couto Viana. Desde 1957, assumiram a direcção Álvaro Parreira e o poeta e
escritor de teatro infantil Fernando de Paços (Viana do Castelo, 8/11/1923 -
Lisboa, 18/6/2003).
Como
Homenagem póstuma a Fernando de Paços, aqui vamos deixar alguns traços do
jornal, o qual dinamizou com o seu vivo entusiasmo por tudo o que dissesse
respeito ao mundo da criança. Nesta nova série do Camarada, Fernando de
Paços continua os intuitos que marcaram os primeiros anos do jornalinho,
abrindo-o sempre «a quem, com um mínimo de qualidade, quisesse tentar a sorte
nas bandas desenhadas e nos pequenos contos apropriados à idade e gosto dos
leitores» (A. M. Couto Viana, João de Deus e um Século de Literatura
Infantil em Portugal, p.35). Aqui foram-se publicando peças de teatro,
pequenos contos, histórias de quadradinhos, biografias históricas, jogos,
passatempos e utilidades práticas para entretenimento da criançada. O autor do
impecável poema Fuga (publicado em 1944, quando andava pelo vinte e um
anos), dedicava-se, incansável, ao Camarada em que a cor das múltiplas
ilustrações e o apurado grafismo, em que a beleza das fantasistas narrativas e
os seus ensinamentos, criaram grande número de pequenos leitores.
(...)
De
Fernando de Paços, o incentivador da publicação desta 2ª série da revista,
lembremos as poesias que escreveu especialmente para os pequenos leitores.
Inspirando-se em animais como o gato, publica a «Fábula do Gato e da
Campainha», um poema com carácter educativo, em que não falta o espírito de educar
para a democracia:
«Proponho
Que
ao rabo do gato da vizinha
Seja
atada uma grande campainha
Que
permanentemente o localize,
Uma
vez que não há quem nos avise
Da
sua sempre inesperada aparição».
A
terminar, um verso eivado de ironia:
«Melhor
fora não propor coisa nenhuma».
(Camarada,
nº Especial, 1965)
No
poema «Domingo» de novo imprime aos versos um tom de ironia, essa ironia que,
não raro, aparece nas personalidades de uma natural timidez:
«(…)
– Já vais para a missa?
–
Já cantam os galos! –
Tombei
a preguiça
Com
um par de estalos. (…)».
(Camarada,
nº5, 1958)
Inspirando-se
no tempo das chuvas, o poeta de Fértil Jardim (1963), escreve a «Canção
à Chuva» caracterizada pelo simples jogo das palavras «chove», «chuva», e
«choveu»:
«Chove,
chove, chove,
Chove,
já choveu!
Três
gotinhas de água
Dentro
do chapéu (…)».
(Camarada,
nº2, 1963)
De
carácter narrativo descobrimos um único poema «A lenda de S. Cristóvão». Neste,
Fernando de Paços desenvolve os versos como se fosse uma história do tipo dos
contos de fadas:
«Junto
à margem da ribeira
Quedava-se,
a meditar,
Deitado
na sua barca
Que
era a melhor do lugar (…)».
(Camarada,
nº6, 1963)
E
depois de caracterizar o barqueiro, sempre usando a rima intercalada, surge o
maravilhoso:
«Um
dia chega um menino
Da
altura de um polegar:
–
Cristóvão, por Deus te peço,
Quero
o rio atravessar – .
–
Saltai para a minha barca:
Bem
vos pode carregar – .»
Os
três últimos versos do poema dão a tonalidade sobrenatural à lenda e o sentido
cristão da lenda construída em torno do santo:
«
– Ó milagre de pasmar! –
Uma
barca toda nova
Encontra
no seu lugar!».
Finalmente,
lembremos ainda o poema «O Cavalo de Pasta» imbuído de um espírito folgazão,
recorrendo sempre à repetição rítmica e melódica tão do gosto infantil. Eis um
excerto:
«(…)
Catrapis!
Catrapis!
É
um bom cavalinho,
Toda
a gente o diz!
Catrapós!
Catrapós!
Quanto
mais o puxam
Mais
ele é veloz! (…)»
(Camarada,
Dez.1958 e Gazeta de Poesia, nº 3/4, 1994)
Estes
são apenas alguns exemplos da poesia infantil que se publicou em Portugal, nas
décadas de 50 e 60. Com entusiasmo, Fernando de Paços insere na revista não só
textos em prosa, mas também toda uma poesia, sempre na tentativa de dar uma
orientação sadia ao público infantil, orientação virada para os valores
literários, científicos e da vida prática, integrando-se estes em contextos de
ordem moral e cívica de fundo cristão.
Aqui
encontrámos a seiva que alimentou gerações de crianças. Das crianças sempre
ansiosas por encontrar e desbravar caminhos, sempre ávidas por descobrir
sentidos no mundo que as rodeia. Das crianças ávidas das histórias de aventuras
em que cada minuto é um acto de coragem, uma ousadia, um desafio. Das crianças
naturalmente desconhecendo o medo de errar ou o medo de perder.
A
leitura vocacionada para um público infantil não pode destruir a pureza, a
sinceridade, a criatividade que habita cada criança. E estas vivem a par do
sonho, dessa espantosa capacidade de construir a verdade. Sem se separar de um
dos mais sólidos princípios da vida adulta, a autenticidade mantém-se firme
perante o sonho. Estes os princípios que nortearam o Camarada ao qual o
poeta de Segundo Dilúvio(1963) se dedicou durante vários anos.
Entre
as «Fábulas» de Campo de Flores (1893) de João de Deus, o Camarada do
tempo de Fernando de Paços e a literatura infantil hoje divulgada nas livrarias
dos grandes centros comerciais, vai um abismo tão radical, que nos parece
urgente repensarmos a literatura para as crianças, nestes primeiros anos do
século XXI. Ou suspeitamos que, se tal não se fizer, a manhã fresca da
imaginação humana sossobrará, porque a criança deixou de o ser demasiado cedo.
E demasiado tarde nos daremos conta de que a abandonamos aos vendedores de
sonhos infantis, esses a quem destruíram os sonhos na infância.
Teresa Ferrer Passos
Fonte: Teresa Ferrer Passos, «A Imprensa e a Poesia Infantil - Algumas
Considerações sobre o jornal O Camarada», Suplemento «das Artes
das Letras», O Primeiro de Janeiro, , 29 de Março de 2004; Cadernos
Vianenses, nº36, Julho de 2005; Internet, www.harmoniadomundo.net
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UMA PERSPECTIVA DE ODES
SUBMERSAS*
DE JOSÉ MANUEL CAPÊLO
Odes Submersas é um conjunto de poemas recolhidos pelo autor a
partir de outros títulos anteriormente dados à estampa. Não sei se terá
escolhido os melhores. Quem pode ser juiz da sua própria obra? Quando o autor
selecciona não privilegiará sempre o que mais profundamente sentiu, o que mais
longamente pensou, o que mais dramaticamente idealizou, descorando assim os
mais perfeitos esteticamente? Acreditamos que isso não aconteceu. Julgar-se a
si próprio é uma arte. E, de facto, José Manuel Capêlo revela, tem revelado, ao
longo do seu percurso poético, uma especial habilidade para se desocultar, para
se oferecer todo e inteiro aos «julgadores».
Com uma disponibilidade ímpar, a sua alma abre-se como as flores na
Primavera. José Manuel Capêlo sabe olhar de fora para dentro, tão dentro de si,
que o texto torna-se uma dádiva, talvez uma oferenda de poeta no altar do deus
Apolo, que venera e cultiva, ainda que pareça emudecido.
Ao abrir Odes Submersas surge paradigmaticamente a «Ode do
pequeno órfão». Significativamente é dedicada ao pai. Esse pai que só
percepcionou brevemente e que foi para ele uma estrela a esfumar-se no
horizonte imemorial da infância. No reino da memória está apenas um nome. Pai.
Na terra do esquecimento aparece a imagem da sedução, de abraço, de lágrima:
«Há dentro de mim, o teu sorriso, a tua boca, a tua alma. O nosso reino será,
sei-o, o infinito do nosso encontro!» (p.7)
A imagem paterna é uma constante da poética imanente e a
transcender-se de José Manuel Capêlo. A romper com as barreiras da cidade
desenhada no grotesco, na loucura dos desatinos ou nos absurdos da normalidade,
José Manuel Capêlo tece em cada poema uma «ode natural» e uma outra «infinita».
A revolta dilacera-o. Tudo não passa de uma arena, de um teatro, de um circo. O
poeta está neles irremediavelmente. Pensa mesmo que só lhe resta «o sangue, o
sexo e as palavras». Afinal, tem ainda «o sofrimento dum cego que toca a
concertina / a tristeza dum pobre que toca ao coração / o choro de um vadio que
se enrosca na noite / o silêncio pesado no véu duma viúva/ a agonia lenta de
dois filhos órfãos» (p.11).
A orfandade prematura do pai é o grito mais fundo do poeta, de novo.
Então, pergunta: «Quem inventou a minha infância?» (p.13). Apenas uma senhora
de luto, sempre de negro: «O luto na alma. Dois órfãos, menores, pequenos,
muito pequenos, eternamente pequenos» (p.13). Eternamente criança é o poeta
órfão da referência paternal e a deambular pela rua Pascoal de Melo «a fustigar
o vento», a espreitar da pequena janela da sua rua de dois sentidos. Dois
sentidos como ele próprio tem, embora só «aparentemente» (p.15).
O gosto pelas «madrugadas passageiras» revela a busca do nocturno,
inefável e obscura noite da memória. Num secreto luto, que remonta à infância,
o poeta olha. E «na incógnita noite (vê) os rastos do poema». Só o poema o
agita até à exaustão. O sexo, o suor, o gesto desvanecem-se na sua memória tão
rapidamente como se escoava o tempo em que via a tutelar imagem paterna. Tudo
passa tão depressa. Sabe-o desde a infância, mas não se cansa de o repetir:
«(...) Tragam cânticos negros e odes triunfais
dispersão e mulheres de luto
o antónio-só clepsidra e as sombras e as vozes
cezanne van gogh picasso modigliani dali
almada amadeo bual lud seixas osório
um exército de não soldados que lutam pela eternidade(...)» (p.20)
E na noite revestida de poemas emerge a «Ode idêntica» que dedica às
suas filhas. «Para mim, só há mulheres!» grita com o medonho grito da memória
do pai. Sempre a sua ausência, a solidão desse frustrado destino sem
paternidade:
«(...) Para mim, só há mulheres!
Nuas, tão nuas como os vestidos que trazem postos
como as gravatas dos homens decentes
Os beijos de infantis crianças (...)
Ah! como é bom sentir-te, noite
felina, fêmea, criatura, relógio, semi-círculo (...)» (p.23)
Gosta da noite... porque é feminina. Na sua envolvência sente-a com
uma força cósmica avassaladora e total de uma infância aprisionada entre duas
mulheres: a mãe e a irmã estão ao lado da ausência de si próprio na imagem
paterna. Atravessa-a decepado da imagem viva, émulo, identidade.
Com poemas constrói a sua pequena casa. A casa do ser masculino. Com
poemas cria o viril, a masculinidade que o próprio vocábulo possui. Procurar
dizer-se, querer ser homem pelo verso através de todos os lugares que sente em
si, sem ter nenhum. A saudade está viva na alma, na entrega a todos e a
buscar-se em ninguém.
«(...) Há saudades nas pernas e nos braços
Há saudades no cérebro por fora
Há grandes raivas feitas de cansaços (...)» (p.29)
José Manuel Capêlo é um poeta de emoções a soltarem-se da emoção
primordial a desencantar-se da origem e a vibrar no presente desconstruído em
formas em que não encontra a sua forma, em vias em que não encontra a sua via,
em mares em que não lobriga o seu mar. A ideia chave de toda a sua vida
transfigurada em poemas de ardência e desespero, pode desvendar-se ainda em
poemas como «Aos quarenta e oito anos da morte prematura» dedicado a Fernando
Pessoa ou em «Eterna serenidade» em memória de Raul de Carvalho. Neste último é
o poeta que renasce no nevoeiro, encoberto como uma alma a reinventar-se e a
ser o nada:
«(...) E se tu não existisses? Se apenas fosses
um secreto lugar onde se escondem as montanhas? (...)» (p.35)
O que não existe
terá existido ou nunca existiu? E se o pai imerso na memória não tivesse
existido? Se fosse apenas «um secreto lugar onde se escondem as montanhas?».
Por isso, o poeta escreve ainda: «Amanhã é nunca. Porque é sempre. E nunca
saberemos se nos encontramos e se tudo foi hoje. Ou se foi verdade. Ou se nada
passou de uma invenção.» (p.39). Com estas palavras carismáticas termina Odes
Submersas. Ao longo delas reinventou o pai. A sua invenção tornou-se
visibilidade. A luz ofereceu-a o poema. Os seus contornos dispersos em gotas de
nada dormem (não estão mortos) em cada um deles. Na agonia de o desconhecer,
tendo-o visto pela última vez com três anos de idade, ressurge a unidade
irredutível do filho órfão e a ter ainda na sua própria identidade a parcela
viril do pai. As mulheres tornam-se efémeras, ante a Imagem. Delas só ressaltam
as negras vestes de sua mãe.
Teresa Ferrer Passos
*José Manuel Capêlo, Odes Submersas, Átrio, Colecção O Lugar da
Pirâmide, nº 40, 1995.
Fonte: Gazeta de Poesia -
Revista de Literatura, Ciência e Artes, Nº6,Out./Inv.1995, pp.10-13.
____________________
COLINA DE POESIA*
«Antes de haver mundo / já
existiam as palavras». Eis dois versos do livro Falar às Aves. Como o
título indicia, o poeta propõe-se falar, ou seja, estar com algo
ou alguém. Diz-nos que é com as aves. Mas será, efectivamente, as aves que Carlos Lopes Pires quer encontrar ou estas são
apenas um pretexto emotivo para falar (com as mais simples palavras),
àqueles que entendem a palavra como fala, como encontro de um eu consigo
próprio, na plenitude do outro?
Imerso na angústia da voz e do
eco, o poeta faz uma recriação da palavra e das palavras. O poeta constrói o
mundo novo do diálogo que é a própria comunhão da linguagem dita. Num «Abraço
Fraterno» e universal traçam-se os caminhos esconsos da palavra nova, suprema e
insubmissa, transparente e com toda a sua opacidade, agreste e suave,
totalizante e circunstancial.
E, afinal, sempre uma palavra a
entoar o cântico das origens, a provocar o nascimento da poesia… Poesia. Essa
palavra que é o prolongamento no efémero ou na fluidez, no esquecimento ou na
memória. Essa palavra que parece, às vezes, uma alquimia qualquer a envolver-se
de misteriosos engenhos, de sigilosas artes e a transbordar num fabuloso «acto
de amor». Por isso, o poeta escreve:
«Se um dia os meus poemas forem
lidos,
(…) Quantos saberão que entre mim
e eles
nunca houve distância,
e que essa voz, tantas vezes
silêncio,
era unicamente um acto de amor?»
(p.35)
Acto de amor. Fraternidade.
Poesia. A tríade mágica de toda a criação. Do princípio e do fim. Da voz e do
seu incontrolável eco. Das coisas serenas e dos seres inquietos. A serem um só
corpo, pela palavra poética. Uma maravilha única no universo imenso do eu
e do tu.
A serem a humanidade reduzida à
frágil barca da poesia, com a limpidez das vetustas aves. Com as pedras e os
rios e todo o vento.
A serem, no poeta veemente, a
ousadia do Falar às Aves docemente…
Teresa Bernardino*
* Heterónimo Teresa Ferrer Passos
* Apresentação do livro Falar às Aves
de Carlos Lopes Pires , no Atheneu
Comercial em Leiria, em 4 de Dezembro de 1993. Não me foi possível fazer uma
análise mais detalhada sobre o livro, pois a solicitação do autor foi feita com
pouco mais de vinte e quatro horas de antecedência (devido a impossibilidade do
Apresentador convidado).
_________________
O PULSAR DA FILOSOFIA EM FERNANDO PESSOA
«Eu não tenho filosofia: tenho
sentidos». Deste asserção, pode-se dizer, parte todas as formulações
filosóficas de Fernando Pessoa. A sensação, a sensibilidade, a emoção serão,
sem dúvida, o princípio dos princípios de qualquer das suas reflexões, dos seus
poemas, da sua dramaturgia. Quer o Poeta expressar a ideia de que a filosofia
deriva precisamente da percepção alcançada pelos sentidos. Tudo tem neles a sua
origem. O próprio mistério, a sua simples captação ou cogitação, não é mais do
que uma manifestação dos sentidos perante a racionalidade.
São os sentidos que provocam a
razão pensante. Por isso, Pessoa escreve: «O único mistério é haver quem pense
no mistério». Se os sentidos pertencem ao visível, ao racional como podem
conceber o invisível ou o irracional? Este questionamento pode relacionar-se,
explicitando-o, com outra frase do Poeta: «Há metafísica bastante em não pensar
em nada».
Precisamente no «não pensar em
nada» está o ponto culminante do mistério. Ao «não pensar em nada» pensa-se,
obviamente, em alguma coisa, e, essa coisa, é o «nada». Esta expressão,
correspondendo à negação do ser, seria naturalmente a afirmação do absurdo para
quem só crê no conhecimento atingido pela sensação. Sintomática desta filosofia
da sensibilidade, tão claramente presente nos poemas de O Guardador de
Rebanhos, não pode deixar de ser a expressão: «Não acredito em Deus porque
nunca o vi». E logo a seguir, contrapõe:
« Pensar em Deus é desobedecer a
Deus
Porque Deus quis que não o
conhecêssemos
Por isso se nos não mostrou»1
Faz, assim, depender o
conhecimento humano dos sentidos. Mas quando diz que Deus não se quis mostrar,
aceita a existência de Deus. Esse Deus está, pois, para Pessoa, além dos
sentidos. É o transcendente, ou seja, aquele que não passa, não pode passar
pela razão humana. Ao fazer depender todos os pensamentos da sensibilidade,
sublinha:
«Penso com os olhos e os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca
Pensar uma flor é vê-la e
cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o
sentido(…)
Sinto todo o meu corpo deitado na
realidade»2
Mais adiante, ajuíza:
«A Natureza não tem dentro(…)
Senão não era natureza»
Para
concluir:
«As coisas não têm significação:
têm existência.
As coisas são o único sentido
oculto das coisas»3
De tal maneira a sensibilidade é,
no poeta dos heterónimos, condutora de toda a existência humana que não põe em
dúvida que o próprio mundo «foi criado pela Emoção»4. A emoção que é sobretudo rejeição ou
comunhão, criaria o existencial, pela recusa ou revolta dos anjos «em busca da
verdade para verem acima de Deus que os criara (…) por isso, ao primeiro anjo
rebelde se chamou Lúcifer – o Portador da Luz»5. E a «Luz» fez-se através da
sensibilidade, da emoção. Assim, todo o universo se moveu e se move pela
«emoção» que busca, provoca, desafia, dinamiza, move. E tudo é movimento porque
tudo é «emoção» – esperança ou desespero, amor ou ódio, miséria ou abundância.
Emoção, sentidos, sensação – expressões de verdade, e, em simultâneo, motivos
de erro, de ignorância, do próprio mistério…
Assim confrontado entre as
correntes espiritualista e materialista, Fernando Pessoa irá inclinar-se para
uma filosofia em que a sensibilidade é a premissa de um transcendentalismo
inerente à própria imanência existencial. O esoterismo constituiu a saída para
uma filosofia fundada na crença numa verdade imanente e imbuída de
transcendência.
Em carta escrita, em 1915, a
Mário de Sá-Carneiro confessa que a tradução de livros teosóficos o abalou
profundamente, acreditando estar nessas obras a «verdade real»6. «Verdade real»
que procurou atingir, primeiro pelos sentidos, pela emoção, depois através de
uma iniciação oculta, mística, que, na essência, acaba por não se desligar
nunca da sua filosofia primeira: a filosofia da sensibilidade. Já, em 1912,
escrevia em «Prece»: «Senhor, que és o céu e a terra, que és a vida e a morte!
O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu! Tu és nossos corpos e as nossas
almas e o nosso amor és tu também. onde nada está tu habitas e onde tudo está –
o teu templo) – eis o teu corpo»7
A iniciação nas ciências ocultas
– desde a astrologia à magia negra e à cabala – significou em Pessoa o epílogo
das suas deambulações filosóficas. De facto, não formulou (ou não pretendeu
sequer formular) uma filosofia de sentido universalista; limitou-se a
questionar o ser, a natureza, o transcendente. A sua busca filosófica assumia
um sentido essencialmente individual, isto é, tinha em vista uma satisfação de
natureza pessoal. Entre o misticismo e a magia, desejava ansiosamente pela
gnose.
Entre, então, no mundo do
ocultismo caótico, que o levará do estádio filosófico ao estádio neo-pagão. No
trilho da verdade escondida, interroga-se fundamentalmente sobre a primeira
causa. A causa das causas ou o absoluto manifesto. O transcendente tornava-se
cada vez mais a razão dos seus questionamentos profundos. A imanência que lhe
sugeriam os sentidos, acaba por não lhe dar a resposta à angústia existencial
que o domina e flagela.
É a imanência que lhe propõe o
caminho para o infinito, o eterno, o espaço do divino. Daí a sua ilação: «A
Causa Infinita é criadora da Realidade, que é infinita, e a Causa Finita é
criadora do Universo». E logo a seguir, sublinha que «o universo não pode ser
infinito, porque infinito é só a infinidade. O universo não pode ser eterno,
porque eterna é só a eternidade»8
Na linha de Sampaio Bruno,
identifica Deus com o «infinito puro». E, não esquecendo as suas afirmações em A
Ideia de Deus, considera que a criação é «uma limitação, uma negação de
Deus por si mesmo»9.
Esta limitação de Deus não será a matéria, o espaço heterogénio, ou melhor, a
expressão da «queda de Deus, defendida pelo filósofo portuense? O Deus falho de
omnipotência, segundo Sampaio Bruno, está presente nas paginas fragmentárias,
nas notas que nos deixou Fernando Pessoa.
Mas igualmente o Deus da Nova
Jerusalém, o Deus do retorno ao «tempo puro e homogénio» não está ausente. O
Cristo seria, para o autor de Mensagem, a mediação pela Liberdade e pelo
Amor para a sociedade nova, bem simbolizada pela «Rosa Cruz». E como
consegui-la? Sampaio Bruno respondera: «Pela Liberdade. Pela Igualdade. Pela
Fraternidade». Não responderia Pessoa de modo semelhante ao ter colocado na
República a esperança do Movimento «Renascença Portuguesa»?
Este seria o veículo para a
realização de um verdadeiro Império da Cultura, do Espírito, da Reconciliação,
onde o universalismo português traçaria o rumo que a Humanidade acabaria por
percorrer. Aqui se insere o espírito de «um só pastor, um só rebanho» expresso
em A Ideia de Deus de Sampaio Bruno. Tendo esta última obra sido
publicada no ano de 1902, ela exerceu, sem dúvida, o seu fascínio em Fernando
Pessoa. Estes foram bem reveladores da sua inquietação existencial, das suas
dúvidas perante um espaço circundante pleno de contradições, de indecifrável,
de obscuras incógnitas.
Se os fragmentos, as notas, os
esquemas de obras que não chegou a realizar, revelam um Poeta de largo pendor
filosofante, elas revelam também que se confrontou com circunstancialismos presentes
e do passado, limitadores de teorizações exclusivamente filosóficas. Na
verdade, também a atmosfera religiosa que envolveu sempre os nossos pensadores
– vocacionados, mas sem concretização plena – impediu a formulação de
consistentes especulações filosóficas. Foram sintomáticos os casos de um Amorim
Viana, na 2ª metade do século XIX, de um Sampaio Bruno, na 1ª década do século
XX. de um Teixeira de Pascoaes ou de um Leonardo Coimbra, os três últimos,
integrados na esfera intelectual contemporânea de Fernando Pessoa.
Ao mesmo tempo, o espaço poético
do autor do Livro do Desassossego, por ser demasiado intenso e profundo,
impediu-o de escapar ao seu predomínio na produção intelectual. Esse espaço é
de tal modo envolvente que, mesmo quando procura no esoterismo a resposta para
a sua alma de interrogações meta-naturais, compara as fases da iniciação
oculta às fases do próprio poeta: «O grau de Adepto será por analogia: 1º –
escrever poesia lírica simples, como na lírica vulgar; 2º – escrever poesia
lírica complexa; 3º – escrever poesia lírica ordenada ou filosófica como na
ode»10.
À filosofia portuguesa põe-se (e
continua a pôr-se) a grande questão: escapar ou não escapar à
dominante tradição intelectual em que o teólogo e o comentador têm estado
sempre actuantes. O ensino ministrado em Portugal, inicialmente pelas escolas
monásticas ou catedrais, depois pelas escolas da Companhia de Jesus, mais tarde
pela Congregação do Oratório (período do Marquês de Pombal), não tornou fácil o
caminho da filosofia em Portugal. O génio português marcado pelo gosto da
acção, da aventura, do concreto, cedeu à corrente filosófica positivista (na 2ª
metade do século XIX), precisamente pelo que ela recorria ao espaço antagónico
das grandes polémicas do ser, da consciência, do absoluto.
O próprio Sampaio Bruno,
racionalista incondicional, anti-dogmático por natureza, anti-clerical por
princípio, viu na adesão à filosofia comteana precisamente essa aversão do
espírito português às grandes especulações da filosofia pura. Por isso, não
poupou críticas aos seus adeptos. A posição de Sampaio Bruno será prosseguida
por Fernando pessoa.
O Poeta das sensações e, sem
paradoxo, o poeta do sagrado. O Poeta cuja filosofia latente se encaminha para
o espaço do religioso e nele se deixa mergulhar, apesar de tudo ser para ele
emoção. E talvez por isso mesmo, escreveria: «Apagar tudo do quadro de um dia
para o outro, ser novo com cada madrugada, numa revirgindade perpétua de
emoção, – isto, e só isto, vale a pena ser ou ter, para ser ou ter o que imperfeitamente
somos»11.
Teresa Bernardino*
* Heterónimo Teresa Ferrer Passos.
1 Ob. Cit., ed. Ática, 1963, p.28.
2 Ibidem,
pp.37-38.
3 Ibidem,
pp.52 e 61.
4 Rosea
Cruz, ed. M. Lencastre, 1989, p.46.
5 Ibidem,
pp.45-46.
6 Textos
Filosóficos e Esotéricos, Publ. Europa-América, nº 471, p.19.
7 Ibidem,
p.139.
8 Ibidem,
p.197.
9 Ibidem,
p.198.
10 Ibidem,
p.181.
11 Livro
do Desassossego, 1ª Parte, Publ. Europa-América, nº468, p.87.
Fonte: Revista Independência,
Dezembro/1992, Ed. Sociedade Histórica da Independência de Portugal; Internet, www.harmoniadomundo.net
_________________________
RUMOS DA LÍNGUA PORTUGUESA
«Voss’amor em
guisa tal que tormenta
que eu senta outra
non m’é, bem nen
mal, mais la vossa
m’é mortal»
J. Lobeira, Amadis
de Gaula
Aproxima-se o ano de 1990. E com
ele o centenário da fundação da primeira universidade portuguesa. A
Universidade ou Estudo Geral surgia, na cidade de Lisboa, em 1290. Reinava D.
Dinis, o rei português que antes do movimento descobridor mais pugnou pelo
desenvolvimento da cultura e, simultaneamente, da língua que lhe deu expressão.
Era a língua portuguesa a preferida pelos poetas líricos da Península Ibérica.
Com esse instrumento, o sábio Afonso X de Castela compôs os seus belos versos
de poeta-trovador. E seu neto, o rei D. Dinis, escreveu, com os seus vocábulos
o mais vasto conjunto medieval de cantares de amigo. A poesia era a expressão
escrita mais frequente, pois a prosa dava predominância ao latim – a língua
universal do mundo medieval.
Por isso, o rei-poeta procurou
dar à expressão linguística da nação a fluência que só o exercício da prosa
pode conferir. O objectivo maior de D. Dinis era, contudo, a dignificação da
prosa em português, numa época em que o latim era a língua usada na maior parte
dos documentos oficiais do reino. E se bem o pensou, melhor o fez. A língua
portuguesa oficializou-se: nos primeiros anos com timidez; depois, a prática da
nova expressão foi-se impondo e a documentação política, económica e social
apareceu na língua vernácula. Maleabilidade, finura e variedade vocabular só os
tempos e as mudanças lhe podiam imprimir. A decisão régia seria decisiva para
que Portugal se impusesse como nação, não apenas com identidade política, mas
igualmente com identidade cultural.
Recentemente, a Sociedade
Histórica da Independência de Portugal lembrou o notável acontecimento, apesar
dos seus escassos meios: num pequeno espaço da sua sede, em Lisboa, reuniu
legislação, poemas, gramáticas, estampas, etc. Todos evocavam o VII Centenário
da oficialização da língua portuguesa. Oficialização que D. Dinis procurou
alargar com medidas que a justificassem plenamente: traduções do árabe (Crónica
do Mouro Razis), do castelhano (código de leis das Sete Partidas de
Afonso X), do catalão, do italiano, do francês. Neste ensejo, como não recordar
a composição da primeira novela portuguesa de cavalaria, o Amadis de Gaula,
que o insuspeito Cervantes classificou como o melhor de todos os livros que,
nesse género, se escreveram? Como não referir os primeiros Livros de
Linhagens, o Nobiliário e a Crónica Geral de Espanha de 1344 da
responsabilidade de D. Pedro, conde de Barcelos, filho do próprio D. Dinis?
As raízes do direito, da
literatura e da historiografia de Portugal estão aqui bem patentes. Nestes
domínios, viríamos a alcançar o prestígio internacional que testemunham um
poema como Os Lusíadas de Camões, um conjunto de leis como as Ordenações
Manuelinas, um romance como o Amor de Perdição de Camilo Castelo
Branco.
Mas, os avanços culturais
referidos não teriam verdadeira dimensão para D. Dinis se a criação de uma
instituição de ensino superior não surgisse: o ensino universitário, pela
primeira vez liberto das ligações à esfera do religioso, surgia com os cursos
de Leis, de Gramática e de Medicina, organizados em Lisboa, nesse ano de 1290.
A língua portuguesa elevava-se à situação de língua de cultura superior, tal
como já o eram o castelhano, o francês ou o inglês.
A oficialização da língua
portuguesa feita por D. Dinis, aparece hoje como o início de uma longa
evolução, que terminaria, há poucos anos, com a oficialização do português nas
antigas colónias portuguesas em território africano. Estes novos países
juntaram-se ao grande país da América do Sul que fala português: o Brasil.
Foi, neste contexto, que surgiu
em 1986 uma hipótese de Acordo Ortográfico entre todos os países de expressão
portuguesa. A ideia que está na origem deste Acordo era a da unificação
ortográfica da língua portuguesa nos vários países, onde ao longo de séculos os
Portugueses foram os administrantes. Ideia louvável para uns, ideia indesejável
para outros. A polémica instalou-se e, em 1989, o Acordo continua a ser motivo
de reflexões, de dúvidas, de acusações várias.
Alguns dizem mesmo que, se
tal Acordo se não verificar, será mais um imperialismo ideológico a pairar
sobre o Português e a sua implantação num mundo a crescer. Esta asserção
parece-nos um pouco exagerada, senão mesmo enfermando da falsa questão que a
própria existência de tal Acordo encerra. E porquê? Porque nenhuma língua pode
exercer um imperialismo, seja qual for a sua espécie, a milhares de quilómetros
de distância, em regiões com tradições, hábitos e culturas tão diversas.
Veja-se um exemplo sobre a
artificialidade da questão das divergências ortográficas: quem se atreveria a
dizer que um texto de Fernão Lopes ou um poema medieval não estão escritos em
português? E como as suas ortografias e até a própria semântica divergem!
Lembremos dois versos de uma cantiga de amigo do jogral Mendinho: «Sedia-m’eu
na ermida de San Simon / E cercaron-mi as ondas que grandes son». A ortografia
é diferente da actual, mas não deixamos, por isso, de a considerar escrita em
português. Essa língua, de que consideramos herdeiros um David Mourão Ferreira
ou um Alçada Baptista.
A versatilidade de uma língua é a
sua maior riqueza: versatilidade ortográfica ou versatilidade vocabular. Ao
acrescentar novos termos à língua portuguesa, o brasileiro não desvirtuou o
português, antes o enriqueceu com uma vitalidade imprevisível.
Daqui a algumas décadas, algo de
semelhante poderá verificar-se no português usado pelos países africanos de
expressão oficial portuguesa. E só teremos de regozijar-nos com as novidades
introduzidas, ortográficas ou semânticas. Esse o destino inevitável de qualquer
língua que se adapte a outras latitudes. Nenhum Acordo Ortográfico poderá
evitá-lo. Porque não terão feito os Franceses, os Ingleses, os Espanhóis, os
seus Acordos Ortográficos em relação às regiões ou países que falavam as suas
línguas, perguntam alguns. Entre nós, o problema parece crucial: desde 1986,
linguistas, académicos, cultores da literatura portuguesa, têm-se dividido
entre a sua vantagem ou a sua inutilidade, senão mesmo o seu carácter
prejudicial.
Se há vozes favoráveis ao Acordo,
revelando a premência que ainda se exerce sobre os Portugueses quando pensam na
perda de um universalismo sem espaço nem tempo a limitá-lo, há também outras
que põem a importância da ortografia de uma língua no seu devido lugar. Um
lugar importante, mas não essencial. Estes últimos avaliam a língua como um
precioso instrumento de cultura, mas que contém um valor maior do que ele
próprio. O valor da cultura que veicula, mesmo quando a ortografia ou a
semântica se alarga. Foi nesta perspectiva que Fernando Pessoa escreveu: «A
primeira coisa em que Portugal se tornou notável na atenção da Europa foi um
fenómeno literário». Dando como exemplos a poesia medieval e a novela Amadis
de Gaula, conclui: «O primeiro afloramento civilizacional deste país foi um
fenómeno de Cultura»1.
Deste modo singelo, mas esclarecedor, Fernando Pessoa homenageia o rei que
tornou oficial, há sete séculos, a língua portuguesa. Essa cultura forjada ao
longo dos séculos e que, mesmo dispersa pelos continentes onde os portugueses
desembarcaram um dia, essa cultura, dizíamos, que não está sujeita a entraves
ortográficos e que é a mensagem maior que uma língua pode transmitir.
Teresa Bernardino
Fonte: Teresa Bernardino, Diário
de Notícias, 16/6/1989; Ensaios
Literários e Críticos, Universitária Editora, Lisboa, 2001, pp. 207-211.
1 Fernando Pessoa, Sobre Portugal. Introdução ao Problema Nacional, Ática, Lisboa, 1979, p. 223.
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FERNANDO PESSOA E A REPÚBLICA
(NO 1º CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE FERNANDO PESSOA)
«Dispersando o seu pensamento por folhas de papel por imprimir, Fernando Pessoa deu forma à sua tão excelente construção poética, mas, igualmente, a acutilantes e inesperadas páginas de prosa densa e de forte fervor político. Fazendo uma pausa no que toca à primeira expressão, exaltada ou ignorada conforme o tempo e as razões, tracemos alguns dos pontos de vista presentes no seus escritos prosaicos sobre a problemática do regime republicano.
As suas ideias acerca do conturbado período que sucedeu à implantação da República diversificam-se ao longo dos anos. Isto significa que o pensamento de Pessoa sobre o novo regime foi um pensamento em mutação ou cíclico: inicialmente, alimentou-o a esperança, mas esta não durou muito; passou, em seguida, à situação de decepcionado, para mais uma vez nele ressurgir a esperança que viria, depois, a morrer.
Cada momento determina a Fernando Pessoa uma reacção ardente, um juízo mais agressivo ou mais benevolente, uma asserção que está na continuidade ou que contesta a crença anteriormente expressa. É uma amálgama onde o contraste e a concordância interpenetram o poeta dos heterónimos, que é vários e um só. Na dispersão dos seus escritos, acentuada pelo carácter fragmentário que possuem, existe a unidade do pensamento insubmisso e não comprometido com a labiríntica teia da política nacional.
Envolvendo-se nas malhas tecidas pelos acontecimentos, procura freneticamente as motivações que os impuseram; analisa comparativamente os tempos da Monarquia com a época pós-revolucionária; busca os erros em que ambos os regimes caíram; tenta descobrir para a nação a salvação libertadora dos vícios que a República não remediou, ao substituir o rei pelo presidente, mas mantendo a mentalidade dos tempos anteriores.
Numa primeira fase, F. Pessoa coloca a República como o regime da esperança, destacando, com veemência, os condicionalismos que a tornaram possível: a identificação da Monarquia com o catolicismo; a sua forma não portuguesa; a ausência de partidos separados por ideologias diferentes, mas de grupos formados por politiqueiros sem inteligência. Estes aspectos da Monarquia não abrangiam o novo regime, o que lhe ia garantir a construção de um Portugal outro, com uma identidade renascida, pronto para constituir uma vanguarda no mundo, como acontecera na época dos Descobrimentos quatrocentistas.
Os factos, contudo, tornaram breve o optimismo de Pessoa. O primeiro governo provisório da República revelou uma prática pouco consentânea com o clima de renovação e regeneração nacional que Fernando Pessoa tanto ambicionava para a Pátria incaracterística, de que a Monarquia constitucional era o paradigma. Ao observar as deficiências da nova ordem política, o poeta de Mensagem interroga-se sobre a solução-República. Estaria a República adaptada aos interesses nacionais? Responderia às inadiáveis questões que atormentavam o país? Quanto ao primeiro problema, Fernando Pessoa conclui que o partido republicano não era suficientemente português. Quanto ao segundo, era impossível responder, com eficácia, pois a República enfermava de três males congénitos: «demasiado socializante, demasiado não nacional e demasiado política»[1]. O primeiro governo provisório era o exemplo vivo da incapacidade «para disciplinar o país, para tornar firme a situação internacional e para seguir uma política patriótica, suprapessoal»[2].
A oportunidade para levar a cabo essa obra surgira, mas a República não a realizou devido, como justifica o poeta, «à desorientação radicalista, à incompetência intelectual e à desunião interna»[3]. Males que vinham do passado recente e que eram a razão de ser maior para o seu desejo de mudar o regime. A esperança da redenção da Pátria começou a esmorecer logo com a constituição do primeiro governo. Foi este que definiu as grandes linhas em que se atolou a República, ao longo de dezasseis anos de história e das quais não logrou sair senão temporariamente, quando emergiu no nebuloso horizonte português a figura carismática de Sidónio Pais, a dar expressão a uma Nova República.
Com o seu prestígio, com a sua autoridade, com o seu carácter generoso, Sidónio Pais aparecia como a decisiva panaceia para assegurar a vitória sobre as «forças dissolventes da nossa sociedade», que apenas substituíram o rei pelo presidente e os partidos por outros partidos semelhantes. Ora, considera F. Pessoa, não era essa a grande missão da República, não era esse o objectivo do derrube da Monarquia. Segundo pensa, ou a mudança se verificava nas estruturas mentais da nação ou então a mudança não valia a pena.
O movimento sidonista, apoiado pelas forças contrárias à demagogia crescente, criou uma nova esperança para a Pátria avassalada pelas ambiciosas facções políticas. Se a Monarquia «havia abusado das ditaduras, os republicanos passaram a legislar em ditadura, fazendo em ditadura as suas leis mais importantes»; se a Monarquia «havia desperdiçado os dinheiros públicos, a república que veio multiplicou por qualquer coisa os escândalos financeiros da monarquia»; se a Monarquia «havia desperdiçado os dinheiros públicos a república que veio multiplicou por qualquer coisa os escândalos financeiros da monarquia»; se a Monarquia «criara um estado revolucionário, a república veio e criou dois ou três estados revolucionários»; se a Monarquia «não conseguira resolver o problema da ordem, a república instituiu a desordem múltipla»[4]. E o poeta, adepto da República, termina o seu raciocínio evidenciando o seu mal-estar com o regime, onde pusera a esperança de regenerar Portugal: «Não melhoramos em administração financeira, não melhoramos em administração geral, não temos mais paz, não temos sequer mais liberdade. Na monarquia era possível insultar por escrito impresso o Rei; na república não era possível, porque era perigoso, insultar até verbalmente o sr. Afonso Costa»[5].
Neste depoimento pessimista podemos encontrar as razões que terão conduzido Fernando Pessoa a apoiar tenazmente o Presidente-Rei, como ele o designa com profunda veneração. É que, para o poeta e pensador inconformado com a realidade nacional que a República não transformara, o sidonismo, contrariamente a ela, inseria-se na tradição política portuguesa, ou seja, na monarquia absolutista ou representativa, onde «se equilibravam o despotismo central com a descentralização municipalista».
A Nova República instaurada pela acção do partido Unionista e a disponibilidade de Sidónio Pais, não prosseguia o constitucionalismo monárquico, como acontecera com a República estabelecida em 5 de Outubro de 1910. Nos escritos que elaborou a propósito da República de Sidónio, Fernando Pessoa aproveita para tecer várias críticas ao Constitucionalismo: o seu carácter não popular, o seu anti-catolicismo, a sua essência internacionalista. Como não servia, por estar fora do tempo, uma monarquia absoluta que extinguira a sua feição municipalista, também fora largamente prejudicial ao país a Monarquia Constitucional, onde as classes médias, como classes, não governavam, mas as classes médias políticas, isto é, as que defendiam interesses individuais.
A revolução Constitucional, escreve Pessoa, efectuou-se «em favor da burguesia europeia e não da portuguesa, (...) o liberalismo foi um anticatolicismo e foi também um antinacionalismo». Por isso, a República, por enfermar de defeitos idênticos, não foi mais do que o epílogo da Monarquia Constitucional.
O assassinato de Sidónio Pais representou para Fernando Pessoa, de novo, o ruir da esperança: o redentor que salvaria Portugal da incompetência, das ambições desenfreadas, da falta de sentido nacional, da desordem partidária, dos excessos incontrolados dos governantes vendidos a interesses alheios, da ausência de desenvolvimento económico e social, morrera às mãos dos que pretendiam continuar a viver na instabilidade e na caducidade cultural, por lhes convir não uma mudança da mentalidade provinciana numa mentalidade universalista, enraizada na nação, mas a simples mudança das pessoas que exerciam o mando. Era uma mudança puramente artificial, desprestigiante das recém-criadas instituições republicanas e reduzida à sobreposição dos benefícios individuais aos do Bem Geral.
Identificado inicialmente com o espírito da República, Fernando Pessoa, bem cedo, se apercebeu dos equívocos que lhe davam forma. Depois de lhe atribuir erros mais graves do que à Monarquia, não vacila em apoiar um homem secundado por muitos monárquicos patriotas. A aventura, no entanto, não foi longe. A esperança fugia novamente para um Pessoa cada vez mais desalentado com o triste panorama político português e que, em 1920, ainda recordava no poema À memória do Presidente-Rei Sidónio Pais, o «Herói que a morte sagrou Rei». A morte é, para o poeta, inaceitável ao não vislumbrar quem o siga com a mesma audácia. Afinal, é insubstituível. Logo não morreu, não pode morrer. Esta a ideia difusa no belo poema que referimos: «No oculto para o nosso olhar, / No visível à nossa alma, / Inda sorri com o antigo ar / De força calma (...) // Não sai da nossa alma a fé / De que, alhures que o mundo e o fado, / Ele inda pensa em nós e é / O bem-amado // (...) Flor alta do paul da grei, / Antemanhã da Redenção, / Nele uma hora encarnou el-rei / Dom Sebastião // (...) E no ar de bruma que estremece / (Clarim longínquo matinal!) / O DESEJADO enfim regresse / A Portugal!»[6].»
Teresa Bernardino
[1] Fernando Pessoa, Da República (1910-1935), Ed. Ática, 1979, p.130.
[2] Ibidem, p.139.
[3] Ib., p.140.
[4] Ib., pp.149-150.
[5] Ib., p.150.
[6] Ib., p.231 e seg.
Fonte: Diário de Notícias, 26/6/1988; Teresa Bernardino, Ensaios Literários e Críticos, Universitária Editora, Lisboa, 2001, pp. 201-206; Internet, www.harmoniadomundo.net
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«SOBRE PORTUGAL – INTRODUÇÃO AO PROBLEMA NACIONAL»
«Ninguém sabe
que coisa quer,
Ninguém conhece
que alma tem,
Nem o que é mal,
nem o que é bem.
(Que ânsia
distante perto chora?).
Tudo é incerto e
derradeiro,
Tudo é disperso,
nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje
és nevoeiro...
É a Hora!»
Fernando Pessoa
A publicação de numerosos
escritos de Fernando Pessoa sobre temas políticos* constitui um importante contributo para
o enriquecimento da cultura nacional, para a sua reformulação em termos mais
seguros e para a revitalização de uma nacionalidade que, perdurando há mais de
oito séculos, continua à procura de um rumo, uma razão de ser, uma justificação
para prosseguir, apesar dos circunstancialismos dos tempos. Se a nossa época
revela que uma crise prolongada pôs em dúvida a nossa prossecução como nação
livre e independente, se a política que temos vivido não conseguiu ainda
encontrar uma ideologia uniforme, firme e audaz no sentido da eficácia e da
durabilidade, se os portugueses continuam na divisão, à procura de uma unidade,
que dê coesão e fundamento estável às formulações sociopolíticas e económicas,
isso deve-se, sobretudo, à ausência de linhas de rumo verdadeiramente nacionais
e, simultaneamente, fiéis à civilização europeia e à dimensão atlântica que nos
identifica. Como afirma Fernando Pessoa «foi pelo Atlântico que fomos à procura
da glória criando a Civilização Maior. É pelo Atlântico que devemos ir em
demanda da civilização Máxima» (p.224).
De facto, se estes escritos
fragmentários de Pessoa revelam, não raro, a ausência de monografias de base
sobre o problema nacional e a ausência de uma linha ideológica suficientemente
explícita, constituem, no entanto, um notável apoio documental para qualquer
meditação sobre Portugal. Ao entrever as grandes linhas de construção mental de
Portugal, propõe que a sua existência e continuidade secular se alicerce nas
raízes ancestrais de natureza espiritual ou cultural que se começaram a
evidenciar com a poesia dos Cancioneiros e com os romances de cavalaria. Depois
de tecer diversas considerações sobre o carácter do povo português, salientando
os seus aspectos negativos, vai abordar o fenómeno da decadência em que
Portugal continuava mergulhado na segunda década do século XX. Ao tentar
analisá-lo, equaciona nele o próprio problema nacional – desde Alcácer-Quibir,
Portugal jamais se levantara da prostração em que imergiram os seus mais altos
valores. Isolado dos outros povos, sobrevivia ainda, mas já não vivia – a
servil imitação das ideologias ou das revoluções estrangeiras tinha-se tornado
vulgar. Como remédio para essa frustrante decadência propôs a industrialização
sistemática. Ontem como hoje, uma revolução industrial urge em Portugal, sob
pena de, tardando demais, já não ser viável a recuperação que o coloque ao
nível de qualquer país europeu médio.
Outro factor de peso na
decadência fora, segundo o poeta, a lenta desnacionalização do país, que faz
recuar à revolução de 1820. Nesta perspectiva, nota igualmente que a incultura,
a deficiente propaganda de Portugal no estrangeiro e a ausência de consciência
superior de nacionalidade foram as principais causas da desvalorização
internacional de Portugal (p.121).
Mas, neste contexto, vê uma saída
para a realidade portuguesa – o mito do Quinto Império. Seria, para Fernando
Pessoa, apenas necessário reavivá-lo e renová-lo. A crença popular no regresso
do tão desejado D. Sebastião seria uma realidade, apesar de todas as
desventuras e da desesperança que, tantas vezes, recaíram sobre o povo. A hora
da grandeza prometida, mas ainda não cumprida, soaria finalmente. É então que
considera, entre os imperialismos possíveis, aquele em que o país melhor se
realizaria – o imperialismo cultural que os descobrimentos tinham assumido pela
sua feição científica. Retomando o seu carácter criador, a nação portuguesa
daria forma á civilização espiritual que as profecias do Bandarra previam.
Acentuando a importância do
inequívoco portuguesismo do mito sebastianista, entrevê-o como o sustentáculo
ideal da realização suprema por Portugal do imprevisível, mas certo, Quinto
Império. O seu instrumento máximo seria a própria língua portuguesa, ao
encerrar em si todos os valores culturais que nos definiam. Na verdade, podemos
hoje comparar esta asserção com o Portugal sem colónias, mas ainda senhor do
mundo pelos milhões de portugueses que espalhados por todas as partes do globo
difundem os seus costumes e os seus valores culturais. Igualmente os países de
expressão portuguesa recentemente descolonizados poderão garantir a permanência
da língua no continente africano, do mesmo modo que o Brasil, independente
desde 1822, não só a conservou como a enriqueceu.
Revertendo ao sonhado D.
Sebastião – salvador do destino de Portugal – destacamos o facto de o autor da
«Introdução» associar a data de 1888, que Pessoa indica como o ano da «vinda»
de D. Sebastião, com a data do nascimento do próprio poeta. Assim, ele seria
esse D. Sebastião – super-Camões, como o define o autor de O Guardador de
Rebanhos – que abriria esses tão ansiosamente esperados Tempos Novos de
Portugal. Se essa hipótese aventada por Joel Serrão, é plausível pelo carácter
tantas vezes enigmático dos escritos daquele, parece-nos pouco provável que F.
Pessoa se classificasse como um super-Camões (real). Apesar de afirmar em certo
passo que o génio nunca é compreendido pelos seus contemporâneos, isso não
justifica que se quisesse identificar com o desejado D. Sebastião. Além disso,
sentimos que falta aos seus escritos a largueza da sistematização teórica
clarificadora e aprofundada para que ele pudesse representar esse doutrinador e
homem de acção que orientaria o futuro Portugal do Quinto Império. Embora
aborde as questões, fica pela sua enunciação, não chegando a atingir o cerne do
problema nacional – falta-lhe o fundamento em estudos anteriores para construir
uma consistente teoria da nação portuguesa.
Na sua desesperada procura de um sentido
para Portugal, como é afirmado na «Introdução», Fernando Pessoa reflecte não só
o seu próprio tempo como também o controverso passado e o desconhecido futuro
que, mesmo assim, projectava para os portugueses. Também actualmente se afigura
urgente a redefinição de Portugal por Portugal, para que o seu autêntico
sentido e significado sejam delineados com base em factores que, na essência,
lhe dêem a dimensão que merece. Acusando os governantes da República de não se
apoiarem «nas realidades psíquicas que são o fundamento da vida da nação», mas
de «viverem mentalmente do estrangeiro» (p.123), pensa que «às influências
estrangeiras» se deve responder pela «capacidade de criação de novos elementos
civilizacionais» (p.117). Contudo, esta tendência nacionalista de F. Pessoa só
pode ser considerada num sentido restrito, pois as realidades peninsular,
europeia e além-atlântica não podem ser secundarizadas, na medida em que o
alheamento das ideias e das acções dos outros povos conduz fatalmente à
estagnação das nações, cujos problemas são, cada vez com mais acutilância,
problemas de carácter universal.
Teresa Bernardino
* Sobre
Portugal. Introdução ao Problema Nacional, Ática, Lisboa, 1979.
Fonte: Diário de Notícias,
8 /1/1980; Teresa Bernardino, O Sentimento Patriótico em Portugal, Lisboa,
ed. Autor, 1983, pp. 49-51; Teresa Bernardino, Ensaios Literários e
Críticos, Universitária Editora, Lisboa, 2001, pp.89-93; Internet, www.harmoniadomundo.net
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