Breves Reflexões religiosas de Teresa Ferrer Passos (heterónimo Teresa Bernardino)

BREVES REFLEXÕES RELIGIOSAS

de

 TERESA FERRER PASSOS  (heterónimo TERESA BERNARDINO)


I - ALGUNS ARTIGOS



A IGREJA PRECISA DO TESTEMUNHO



«Quando a Igreja se fecha sem dar testemunho, torna-se estéril»
Papa Francisco

  
A Igreja deve ter um posicionamento frontal nas relações humanas; tratar as pessoas com doçura, na sinceridade, sem desprezar, sem complexos de superioridade sobre os outros. Muitos sacerdotes e leigos da Igreja fazem, com frequência, artigos para revistas, conferências e homilias encapotadas em saberes muito acima da média cultural.



A confusão gera-se com o avanço de teorias desconhecidas, a propósito até de dogmas de fé.   Também há leigos com funções religiosas nas paróquias que são de difícil trato, falando aos outros com as suas decisões indiscutíveis porque, julgam, têm a graça de Deus com eles.

  

Há intelectuais ligados à Igreja com comportamentos narcísicos o que invalida as abordagens das temáticas religiosas; é notório o modo soberbo com que se debruçam sobre santos que não atingiram a sua craveira intelectual.



    

Julgam que o saber desses santos, feito de sensibilidade e experiência, sem um alto fundamento de erudição, não é valioso, afinal, não é mais do que nocivo. Nos seus estreitos ângulos de visão, só a erudição é sábia e, assim, dá estatuto, perante Deus e os homens.

Apresentam-se santos mais eruditos, outros nem tanto. Logo, merecem menos atenção, menos destaque. Ora o Cristianismo passa, como considera e muito bem o Papa Francisco, pelo testemunho que oferece o contacto humilde com o próximo, o modo de cada um ser na vida de relação; não basta mostrar conhecimentos interpretativos rebuscados, frases de estranho significado, discursos exaustivos a afundarem-se em complexos vocábulos que ninguém conhece.
É assim que, sacerdotes e leigos ligados à Igreja de Cristo, querem dar testemunho? Julgam que, assim, dão testemunho? Não. Reduzem a missão apenas a uma insípida explanação de ostentatória e estéril linguagem, propagam uma religião hermética, sem comunicação com o que está fora, o que devia ser procurado, como fazia Jesus.



Esta Igreja redutora julga não precisar de mais nada para ganhar o céu. Esquece que se equivoca. O testemunho é exigente. Não o é a exibição de qualquer título eclesiástico e académico. Muito menos é Igreja, um padre receber de costas voltadas ou a ler o jornal da paróquia, aquele que está à porta a tentar aproximar-se, a procurar uma ajuda.

O testemunho implica dar o exemplo de estar pronto para socorrer aquele que está desempregado, aquele que vive solitário porque perdeu a família, aquele que tem mais de cinquenta anos e é tratado como se fosse um velho, ao tirarem-lhe a esperança de ser testemunho do Evangelho, gratuitamente. A vida de todos os dias é rica em muitas pequeninas coisas na relação com os outros.



Só nessas ocasiões se é chamado a dar testemunho de Jesus; e isto é seguir Jesus no servir o irmão que está à nossa frente. O testemunho é difícil porque a Igreja se esquece da «construção do Reino de Deus». Como disse Jesus, os que o querem seguir devem começar pela construção do Reino, depois «tudo virá por acréscimo».

A pregação de Jesus foi directa à acção. As acções é que serão avaliadas no Juízo Final, não o que ficou pelas extensíssimas arengas, pela erudição cultivada nas academias pedagógicas que publicam interpretações infindáveis. A isto resta ficar escondido nos sótãos dos séculos.



Sem respirar com Jesus Cristo o ar da simplicidade e do fraterno encontro, a Igreja fica estéril. Para essa Igreja, o racionalismo ainda impera: assim, ou a religião se racionaliza ou a religião tem apenas uma dimensão ignara, onde se instala a torpe devoção popular, sem qualidade superior, sem qualidade de sábios.

      

A devoção popular, com baixa cotação nas redes sociais da ciência, da tecnologia, da inteligência, torna-se sinónimo de mentecapta e obsoleta. Como considera o Papa Francisco, esta Igreja, formada por intelectuais – eruditos, sacerdotes ou leigos − tem de ceder muito terreno ao testemunho, mesmo que este implique o martírio. Se assim não acontecer, o risco de a Igreja se perder cada vez mais de Jesus, torna-se iminente.

O primeiro exemplo do testemunho, que tudo ultrapassou dando a própria vida, foi Estêvão, jovem discípulo da comunidade de Jerusalém. Foi ele que, com o seu ousado testemunho, mostrou que o perigo de perder a própria vida não o assustava.
Diz-nos o memorial dos Actos dos Apóstolos que Jesus acabara de vencer a morte e o sepulcro, ressuscitando. Com este sentido novo da fé, Estêvão testemunhou e foi o primeiro mártir. O testemunho de Estêvão não era aceite pelos judeus mais cultos.



Porém, ele não fugiu. Não mudou de comportamento. Não teve medo de desagradar. Logo, as pedras da perseguição atingiram-no, mas não o fizeram mudar. A morte não seria uma porta fechada porque outra porta abria-se-lhe no céu. 


8 de Maio de 2014

                                                       Teresa Ferrer Passos*

* Heterónimo de Teresa Bernardino.


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OS JUÍZOS DO MUNDO


O medo do juízo dos outros destrói a identidade mais firme, anula a fé como se ela fosse vã, apaga a fidelidade e faz-nos escravos daquilo em que não acreditamos.
Jesus mostrou não ter medo dos juízos do mundo. Afastou-se sem ruído, quando o insultavam. Respondia sereno, se o interrogavam. Prometeu o céu aos que d'Ele desconfiavam. Conhecia a cobardia do amigo e perdoou-lhe. 
Enfrentando a deslealdade e a denúncia do companheiro, mesmo assim foi capaz de comer com ele à mesa. Estava neste mundo que não tinha as leis do seu mundo e procurou mudá-las para as fazer idênticas às do seu mundo, para que o seu mundo se alargasse também a este. 
As autoridades judaicas tentavam afastá-lo do povo. É que Ele dizia ter um poder de natureza espiritual, e não lhe interessava o poder político, nem a ostentação nem o mando. Ele era a antítese do rei temporal que devia ser o messias prometido pelos profetas. O messias que esperavam, viria libertá-los da dominação do Império Romano. 
Seria um rei poderoso e libertador de um só povo, Israel. Este que se auto-denominava o messias, não era o prometido porque "não feria os tiranos com decretos da sua boca" (Is 11, 4). Até dizia que não havia grego nem romano, não havia senhor nem escravo, todos eram um só povo. "Eu sou o pão vivo que desceu do Céu" (Jo 6, 51) ou "Eu vivo pelo Pai" (Jo 6, 57 ), repetia. 
Ao entrar em Jerusalém montado num jumento, naquela Páscoa, muitos do povo, julgando-o o messias anunciado, aclamaram-no. Porém, quando Jesus vai ao Templo, ao ver os átrios cheios de vendedores, decide expulsá-los. A desconfiança com Jesus é levada ao rubro. 
As autoridades judaicas tentam prendê-lo. É que tal atitude só podia ser de um falso messias. Não era ele o rei que viria para os salvar do domínio temporal dos seus inimigos! De novo, acusam Jesus. Dizendo-se o messias só tinha promessas de "vida eterna": "O que come deste pão viverá eternamente" (Jo 6, 58). 
A denúncia de Judas ajudou à sua rápida prisão: "Os guardas fornecidos pelos príncipes dos sacerdotes e pelos fariseus" (Jo 18, 3) prenderam-no e "conduziram-no a Anás, por ser sogro de Caifás, que era o Sumo Sacerdote, desse ano" (Jo 18, 13). Uma acusação: blasfema contra o messias prometido, blasfema contra Deus. 
A autoridade romana representada por Pilatos, superior à autoridade judaica, "não lhe achou culpa alguma", mas o povo judeu e os sacerdotes pediam a pena capital: "Crucifica-o!". 
Ao terceiro dia após a sua morte, foram ao sepulcro Maria de Magdala, Maria mãe de Tiago e Salomé, mas alguém lhes disse que ressuscitara: "Não está aqui" (Mc 16, 6). Algum tempo depois, "apareceu aos onze, quando estavam à mesa" (Mc 16, 14). Enviou-os, mais uma vez, a anunciar a Boa Nova que tinham recebido dele. 
Como estavam a ver, Ele era o Messias prometido, mas esse, o prometido, era um Messias construtor de um Reino do Espírito, não de um reino de natureza material, como os sacerdotes do Templo defendiam teimosamente.
Estava ali. E Jesus mostrava as mãos furadas pelos pregos da cruz.
Ressuscitara, como lhes tinha dito.

Páscoa/2012
Teresa Ferrer Passos*

*Heterónimo de Teresa Bernardino.



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II - CRÍTICA LITERÁRIA



O ÚLTIMO SEGREDO
OU UMA FICÇÃO PARA ATACAR O CRISTIANISMO?

«O céu e a terra passarão,
mas as Minhas palavras não passarão.»
Mt 24, 35

«Não crês que Eu estou no Pai e que o Pai está em Mim?
As palavras que Eu vos digo, não as digo de Mim mesmo
 mas o Pai que está em Mim.»
Jo 14, 10


Não sei se o cristianismo encerra O Último Segredo da religiosidade humana. Mas, se assim não é, pelo menos parece encerrar qualquer sedução frequente nos escritores contemporâneos, não para o seguirem, mas para o contestarem. Inundados de temáticas variadíssimas num mundo tão globalizado como o nosso, parecem ter muita dificuldade em não se inspirar nas tramas eclesiais, nos enredos evangélicos e nas narrativas do judaísmo para a construção de uma parte significativa dos seus romances. Trata-se do caso de José Rodrigues dos Santos. Tem em vista ser um atento observador visual do fenómeno cristão, mas numa captação demasiado literal e, por outro lado, distante do ficcional. Trata-se de uma narrativa empobrecida pelo predomínio do facto sobre a imaginação, envergando um simplismo inesperado. A ausência de um fio condutor essencialmente romanesco – e a sua substituição por um fio narrativo de uma única personagem, Tomás Noronha –, fazem deste romance um “pastiche” do género literário designado por romance.
1. A obra, apresentando-se como ficcional, transmite apenas a ideia de que o autor procura, no essencial, contestar a autenticidade dos escritos evangélicos e dos primeiros cristãos. As suas arremetidas têm nitidamente em vista escandalizar os cristãos e humilhar a sua Igreja. Escandalizar é, sem dúvida, uma táctica de vitória imediata. Com as afirmações da personagem “Tomás Noronha”, um historiador frequentador da Biblioteca do Vaticano, em Roma, o autor de O Último Segredo desvincula-se da sua argumentação ao dizer que escreveu um romance e, ao mesmo tempo, assume na personagem Noronha a sua própria argumentação ao longo desta narrativa (como afirma na entrevista ao Telejornal da RTP 2 por ocasião do lançamento de O Último Segredo).
O que José Rodrigues dos Santos (JRS) tenta provar é, no fundamental, a falta de credibilidade de Jesus, dos Apóstolos e dos que os seguiram, desde os primeiros séculos (após a crucificação). Damos só alguns exemplos retirados de O Último Segredo: «Os textos exprimem a intenção e os condicionalismos dos seus autores (…); Os autores dos Evangelhos (…) pretendiam glorificá-lo [a Jesus] e persuadir outras pessoas de que ele era o Messias» (p.51); «A história da adúltera é forjada» (p.55); «foi um episódio acrescentado por escribas» (p. 90); «a ressurreição é outra fraude» (p.82), «os versículos da ressurreição de Jesus estão ausentes dos dois melhores e mais antigos manuscritos» (p.94); «esta narrativa não pertence ao texto original e foi acrescentada por um escriba posterior» (p.94), etc. Apenas estes exemplos, podendo multiplicar-se, bastam para vermos o que move JRS, com uma evidência que não se deixa ficar por pormenores: JRS acusou de fraudes e de fraudulentos os documentos em que se fundamenta a fé cristã (não exclusivamente de inspiração católica). Mas, mais do que isso, chamou «parolo de província» (p. 278) a Jesus e «parolos e analfabetos» aos Apóstolos porque eram duma insignificante terra, a Galileia. E «a própria família de Jesus achava que ele não batia bem da cabeça» (p. 313). Depois, acentua: «A vida e os ensinamentos de Jesus não fundaram o cristianismo. Provavelmente nunca lhe passou pela cabeça criar uma nova religião» (p.283). E, mais adiante: «O cristianismo não se funda na vida e nos ensinamentos de Jesus mas na sua morte» (p.283)
2. De facto, JRS não se separa da predominante mentalidade do mundo contemporâneo, não está longe das rupturas com o espaço do religioso e das dúvidas lançadas sobre a verdade dogmática do cristianismo. JRS insere-se na corrente da supremacia do relativismo que a ciência consolidou no século XX. A religiosidade, a mística, a filosofia tornaram-se saberes estranhos, contrários mesmo ao certo saber científico. As ideias de absoluto pressupostas por Platão e expressas na Crítica da Razão Pura por Kant estão submersas sob o peso de uma tecnicidade aplicada ao mental, de uma fenomenologia tão dominadora como desesperada. E tudo isto se esfuma nas ideologias niilistas ou do nada, implantadas no século XIX e que alcançam o apogeu no século XX.
Ao abrir os jogos perigosos da polémica à volta da crença e da descrença, hoje, JRS não consegue, com as inúmeras provas dadas até à exaustão pela personagem Noronha, provar seja o que for. A sua argumentação não é filosófica nem teológica; contudo, procura ser histórica. Mas, também nesta alternativa falha o seu objectivo e a sua táctica não é convincente. Com esta última área do conhecimento, a História, JRS julga ter descoberto a sua mais poderosa arma de destruição da fé cristã, derrubar a fé atacando as suas estruturas fundamentantes e fundamentais.
De facto, JRS tenta mostrar até à exaustão que são poderosas as provas dadas pela personagem Noronha neste romance, em que o autor faz jogos de historiografia, mais do que um criativo discurso da arte do romance. Baseando-se sempre nos próprios testemunhos bíblicos, JRS acredita ser capaz de pôr a nu a falsidade da pedagogia de Jesus, pedagogia olhada como leviana e insensata. Numa palavra, ao falso testemunho dos seus adeptos, aliaram-se, como acentua JRS, os fraudulentos testemunhos dos seus continuadores. Para o autor de O Último Segredo, uma infame doutrina foi edificada por escribas fraudulentos, por teólogos da sofisticação e por copistas adulteradores. Os Evangelhos e as Cartas de S. Paulo, os mais antigos testemunhos sobre a vida de Jesus são, segundo JRS, na maior parte, documentos falsos sem a mais pequena réstia de honestidade.
  3. A História conduz à verdade, as fontes históricas conduzem à verdade, pensa JRS. Logo, como se isto fosse um silogismo, JRS considera que essa é a sua arma de arremesso mais poderosa. A “personagem-historiador Noronha” anda na Biblioteca do Vaticano à procura da verdade. Para descobrir a verdade é que existem as fontes e os mananciais de obras historiográficas acumuladas ao longo de milénios. Os meios para atingir os seus fins parecem inserir-se na optimização. Contudo, JRS, pouco versado nas difíceis tarefas do historiador, parte de uma premissa errada: a de que a história é a ciência que leva à verdade.
JRS, com a ajuda de vários teólogos e historiadores contemporâneos, acredita que toda a verdade foi desmascarada e os fraudulentos desocultados por eles. Ora, os historiadores imparciais sabem que a História não procura a verdade, mas as verdades de cada época, a verdade dos grupos humanos antagónicos de outros, a verdade de estruturas políticas, económicas ou sociais, a verdade de estratos de dirigentes ou a verdade de massas populares com perspectivas bem diferenciadas ou coetâneas numa determinada conjuntura. Em consequência, tão pouco a história é uma garantia segura de verdade.
Só um mau historiador parte de perspectivas preconceituosas em que só pretende provar aquilo que tem em vista. Pode fazê-lo, sem dúvida, mas falha no seu ofício. O bom historiador nada tenta provar, sob pena de ir procurar argumentos a favor da sua tese e não argumentos para se aproximar do sentido próximo, o mais próximo possível, dos factos tal como eles se verificaram. A verdade de um facto, de uma conjuntura ou de uma estrutura social, varia consoante as fontes que chegaram até nós (e a sua margem mais ou menos maior de idoneidade).
Nesta narrativa ficcional, JRS introduz uma personagem (Tomás Noronha) que serve o seu objectivo de introduzir na narrativa (aparentemente ficcional) um historiador perfeito, ou seja, um historiador modelo ou ideal. Ao vestir-se de historiador modelo, praticamente infalível, Noronha não tem opositores ao seu nível. Mas ele não é mais do que o próprio autor de O Último Segredo. Só que a JRS falta a objectividade e a imparcialidade que o bom historiador deve ter na busca do sentido dos documentos e da sua autenticidade. A personagem que dialoga com Noronha é uma inspectora policial (Valentina) que nada contrapõe (apenas se espanta, muitas vezes) às suas afirmações como se estas fossem indiscutíveis e, portanto, inatacáveis.
O autor de O Último Segredo cai, assim, numa falaciosa argumentação sem a consistência que tal cometimento lhe exigiria. Vejam-se estas breves passagens: «Os autores destes textos não testemunharam coisa nenhuma» (p.144); «Dos vinte e sete textos do Novo Testamento, apenas oito são de autoria segura» (p.145); «os seus seguidores (…) puseram-se a atribuir a Jesus elementos que constavam das antigas profecias, de modo a convencer os outros judeus» (p.166); «Tudo é reminiscente do Antigo Testamento!», «mesmo os episódios da vida de Jesus» (p.169); «A fraude da divindade de Jesus» (p.183); «Paulo e Pedro aparecem até a sugerir que, em vida, Jesus nem sequer era Filho de Deus» (p.189); «Este é também o símbolo da Santíssima Trindade (…) a mais bizarra das invenções do cristianismo» (p.195), etc., etc.
A argumentação – presente nas intervenções descabidas do contexto romanesco da personagem Noronha – imbuída daquilo a que Noronha chama as provas (uma catadupa de episódios bíblicos onde procura sempre e, ao acaso, múltiplas contradições e falsificações sem qualquer estudo objectivo das mesmas) vai conduzi-lo, de acordo com o narrador (JRS ou a “personagem Noronha”), automaticamente, à verdade. O historiador Noronha ao persuadir a inspectora Valentina da ausência de idoneidade e de uma honestidade mínima dos Evangelhos cristãos desvia-a continuamente daquilo que ela pretende investigar e que é um crime cometido sobre uma historiadora também da biblioteca do Vaticano. E este rumo que é dado à narrativa é incoerente num discurso ficcional. O desenvolvimento ficcional, se não houvesse estas quebras contínuas do discurso narrativo (as provas irrefutáveis, sempre, e fiéis abonatórias da verdade), teria uma lógica. Assim, perde-a irremediavelmente para o mal da arte do romance em causa.
4. A sucessão de crimes cometidos ao longo da narrativa, induz o leitor a desconfiar de que a responsabilidade dos vários crimes cometidos ao longo deste romance (assim estranhamente denominado), seja da responsabilidade da Igreja Católica. Para JRS, a Igreja teme a descoberta das terríveis fraudes que os seus membros, desde os autores dos Evangelhos (igrejas locais seguidoras de Mateus, Marcos, Lucas e João que deram aos textos os seus nomes), esconderam sempre ao longo dos séculos.
Se o “historiador Noronha” não obtém da investigadora policial contestação (apesar de ela própria ser cristã católica), mas apenas anuência (aceita, apesar de se mostrar estupefacta com a sucessão de provas) às suas palavras acusatórias de ausência de veracidade nos factos narrados pelas fontes evangélicas, então acaba por cair num monólogo de erudição relativamente ao qual a inspectora não tem conhecimentos para contrapor seja o que for. O “historiador Noronha” vai apresentando provas indiscutíveis, completamente irrefutáveis porque ninguém lhe faz uma única pergunta que ponha em causa a sua omnisciência sobre a documentação estruturante do cristianismo. Tudo o que ele diz não sofre oposição. Ele está cheio de certezas sobre a desocultação dos enganos veiculados por um corpo eclesial desonesto, enganador dos incautos que nele vão acreditando.
A verdade é que “a personagem Noronha”, com as suas provas, representa o próprio JRS ao longo de toda a narrativa. Sob a capa de estar a escrever uma ficção, o autor transvestiu-se de historiador “preparado” até à exaustão para denunciar, com a força das muitas provas, uma crença construída, como ele considera, sobre falsidades incontáveis, e em que tantos cristãos se têm deixado enredar. Neste contexto, estranhamos como JRS se deixou ele próprio enredar na série de provas de sensatez duvidosa e nos inconsistentes argumentos do “historiador Noronha” perante um adversário que representando um cristão, nada parece saber de cristianismo (a quase amorfa “inspectora Valentina”).
5. A culminar a espantosa sucessão de provas, JRS, através daquele omnisciente “historiador Noronha”, sempre sem dúvidas de espécie alguma, ataca a fé cristã com passagens evangélicas a “provar”, sempre a “provar” que, entre outras acusações, Jesus era violento e pregava uma moral retaliadora. Ora isto não se identificaria nunca com a moral das igrejas cristãs que lhe prestam culto como o Deus que encarnou para salvar os homens do mal que eles próprios vão construindo através de pensamentos e actos. De facto, se nos Evangelhos aparecem expressões de ira e de condenação para os maus usadas por Jesus, estas expressões não são mais do que formas de persuadir os homens que se conduzem por critérios maus de que há uma justiça suprema perante a qual eles não ficarão impunes.
Como diz Jesus, «Vinde benditos de Meu Pai, recebei em herança o Reino que vos está preparado desde a criação do mundo» (Mt 25, 34). À recompensa das acções boas, não pode deixar de se contrapor o castigo que será a morte física acompanhada da morte espiritual. O inferno para o homem, ensina Jesus, é precisamente não sobreviver à morte física decorrente das leis biológicas. Mas, Jesus não tem todo o saber, quem o tem é o Pai. Foi isso que Jesus não se cansou de dizer. A missão de Jesus é precisamente proclamar o saber que o Pai possui (Mt 20, 23); não é Jesus que perdoa, mas o Pai que perdoa (Mt 12, 30-32); Jesus diz que ninguém é bom a não ser Deus (Lc 18, 19).
Ser condenado por um Deus que expõe – através de Jesus – a conduta daquele que é bom, significa que seria absurdo Deus receber no seu “Reino”, perfeito na santidade, aqueles que são maus com os seus irmãos, aqueles que perseveram no mal, não se arrependendo da sua maldade. Como disse Jesus: «Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, mas quem perder a sua vida por Minha causa, salvá-la-á» (Lc 9, 24). Diz também que um bom (justo) pode estar entre aqueles que não cumprem os preceitos da Lei Mosaica («haverá mais tolerância para Tiro e Sidónia (…)» (Mt 11, 21,22). Ou sentencia: «Vós, amai os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai, sem nada esperar em troca. A vossa recompensa será grande e sereis filhos do Altíssimo, porque Ele é bom até para com os ingratos e os maus» (Lc 6, 35).
É um erro o autor de O Último Segredo estar a considerar Jesus como um ser mau porque ameaça com o “fogo” eterno, amaldiçoando os cruéis que sofrerão o “suplício”, sinónimo de morte eterna. A expressão “suplício”, por exemplo, contrapõe-se à recompensa dos justos que terão a “vida” eterna (Mt 25,46). Estas frases mostram que Jesus pretendeu dar aos seus ouvintes a dimensão do mal que praticam, em função do castigo que será atribuído. Se Jesus sofre e se condói ante o criminoso crucificado e arrependido que o lamenta – «Hoje mesmo estarás comigo no Reino de Meu Pai» (Lc 23, 42) –, quer-nos fazer avaliar o espírito misericordioso de Deus; se chama malditos, intemeratamente, aos fariseus, aos saduceus, aos escribas, às classes dirigentes da Palestina é porque serão benditos aqueles que se opõem à conduta desses grupos sociais (Mt 16, 6 e 11, 25, 41-46). Quando diz, «não penseis que vim trazer a paz» (Mt 10, 34), ou «não oponhais resistência ao mau» (Mt 5, 39), parece contradizer-se, mas o sentido da primeira frase é idêntico ao da segunda. Não veio trazer a paz porque a paz também pode ser podre, sem dentro, sem estar no coração. A paz que Jesus deseja não é a ausência de combate em prol da justiça e do bem; é a paz de um coração que, na paz, não aceita passivamente a injustiça, a calúnia e a crueldade. É a paz verdadeira que deve habitar o espírito e não a paz construída sobre alicerces de cobardia e submissão para não correr riscos.
E Jesus aceita o risco. Ele está no meio de inimigos e não deixa de dizer a verdade, mesmo que vá perder materialmente com isso. Lembremos a frase: «Por fora pareceis justos aos homens, mas por dentro, estais cheios de hipocrisia e de iniquidade» (Mt 23, 28). Jesus toma o partido dos pobres, dos perseguidos, dos injustiçados, dos doentes, dos excluídos da sociedade, o que o expõe a ser denunciado (Judas vendeu-o por dinheiro), a ser trocado por Barrabás, um salteador, a ser motivo de prisão e condenação à morte com a pena máxima, a crucificação, pelo supremo tribunal de Jerusalém.
6. Outro ponto que O Último Segredo patenteia é a noção que JRS tem do que significa ser historiador e, portanto, do que é “fazer História”. Segundo um dos maiores historiadores contemporâneos, George Duby, o historiador «deve dar a maior atenção àquilo que não foi dito» porque «as omissões formam um elo fundamental do discurso ideológico». “Fazer História” implica, na verdade, confrontar os interesses das “classes dominantes” com “as ideologias dominantes”, mesmo com “as ideologias triunfantes” e as “elites”. Ensina Duby: «Difícil é, em primeiro lugar, a recolha de testemunhos (…) É o caso das ideologias ‘populares’ É igualmente o caso de todas as ideologias contestatárias que foram reprimidas» (Ob. cit. pp. 180). Ora, a de Jesus era-o. Por isso, Jesus, os seus apóstolos (e os seus continuadores), fazem parte da classe sem direitos, sem prestígio. Na verdade, Jesus contestava o poder.
Jesus sofreu a repressão brutal das autoridades políticas judaicas e do exército Romano dominador. É que Jesus pertencia ao grupo daqueles que combatiam o poder despótico de Roma («Já não há escravo nem homem livre»), e, em simultâneo, a hipocrisia e a avareza dos fariseus, entre outros pecados («Ai de vós escribas e fariseus hipócritas, porque pagais o dízimo da hortelã, do funcho e do tomilho e desprezais o mais importante da Lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade» (Mt 23, 23). Por outro lado, ao mesmo tempo que contestava o poder político do Estado Imperial Romano, atingia, sem subterfúgios, o poder político e religioso da região dominada, a Palestina. O tempo de pregação pública de Jesus foi sempre um tempo perigoso (sobretudo os grupos possidentes da hierarquia judaica queriam fazê-lo cair em ciladas, armadilhas linguísticas, contradições com a Lei Mosaica, uma Lei indiscutível para os quadros dirigentes de Jerusalém). O anúncio da Boa Nova não foi aceite pelos grandes, pelos poderosos, pela classe dirigente, nem dos judeus, nem do Império Romano, que os dominava desde a conquista romana.
Depois deste intróito, lembremos mais algumas das insuperáveis provas que JRS (o “historiador Noronha”) apresenta ficcionalmente à hipotética senhora católica, “a inspectora Valentina”, em O Último Segredo: «Não há um único texto romano do século I sobre Jesus. Nem manuscritos, nem documentos administrativos (…) nem alusões de passagem, nem referências crípticas» (p.60); «A primeira referência de um romano a Jesus foi feita no século II, por Plínio o Jovem, numa carta ao imperador Trajano» (p.60); «Quantos textos não cristãos do século I existem a relatar a vida de Jesus?» (p.60); «Vários episódios são completamente inventados» (p.147); «O Messias prometido (…) era aquele desgraçado que os Romanos haviam sacrificado» (p. 163); «Jesus», «um rabino pobre da Galileia cujo exército não passava de um punhado de pescadores e artesãos analfabetos» (p.165). Poderíamos prosseguir com a argumentação aparentemente arrasante usada pela “personagem Noronha” perante o mutismo da “inspectora” que, católica, notemo-lo de novo, se revela pouco convicta da sua fé (sempre muito complacente e desconcertada pelo espanto) perante os acometimentos eruditos de “Noronha”.
7. Ora, diz-nos George Duby em Fazer História I que é preciso «procurar nas refutações, nos argumentos da contra-propaganda» as pistas de aproximação dos factos estudados. O “historiador Noronha” não o faz ao longo das muitas páginas em que apresenta, quase incansavelmente, as suas provas. E, mais adiante, G. Duby insiste: «Os documentos nunca esclarecem directamente senão as ideologias que correspondem aos interesses e esperanças das classes dirigentes, porque apenas esses grupos detiveram os meios de construírem objectos culturais que não fossem efémeros e cujos vestígios se prestassem à análise histórica» (Ob. cit., pp.180 e 181).
Lembramos, ainda, ao autor de O Último Segredo que uma minoria anti-judaica e anti-romana propagava, clandestinamente, o Evangelho (=Boa Nova) transmitido por Jesus, um condenado à morte pela Lei judaica. Esta minoria adepta do Nazareno era ignorada e não constituía motivo de notícia para a maioria dos historiadores pagãos num mundo em que o Imperador se assumia como “Pontifex Maximus”, ou seja, chefe supremo da religião do Povo Romano. Só o historiador judeu Flávio Josefo se referiu vagamente a esse crucificado na região da Judeia.
Consultámos ainda o historiador Jean Moreau, autor de La Persecution du Chrystianisme dans l’ Empire Romain, pois nos pode ajudar a esclarecer este ponto acima levantado no livro de JRS com as provas (sempre as provas) que possui “a personagem Noronha”. Vejam-se as passagens de J. Moreau que, a seguir, transcrevemos: «Até às grandes revoltas de 66, os incidentes só tiveram uma importância local» (p.24); «A perseguição de Herodes em 44 data da missão cristã a Antioquia». E, mais à frente: «Não se pode pôr em dúvida que as perturbações que ensanguentaram Antioquia em 40 resultaram da missão cristã na cidade» (p.28). E, Jean Moreau ainda acentua: «É possível que a expulsão dos judeus de Roma decretada por Cláudio seja consequência da agitação provocada na comunidade da Urbe pela primeira missão anterior à chegada de Paulo» (p.28). «De facto, Suetónio menciona entre as medidas louváveis de Cláudio esta: com frequência explodem conflitos em Roma, desencadeados por judeus cristãos» (p.29). E sublinha a seguir: «Só o messianismo cristão, ultrapassado o quadro estreito do nacionalismo judaico, podia provocar perturbações até na colónia israelita da capital [Roma]» (p.29). Também outra importante passagem deste especialista de história do cristianismo primitivo: «A alusão de Suetónio visa realmente os primeiros ensaios da expansão da religião nova em Roma» (…); «a medida tomada por Cláudio visava os judeus de Roma no seu conjunto; o governo não tinha ainda aprendido a fazer a distinção entre os judeus e os cristãos» (p.30). Para mais informação, este historiador remete o leitor para a sua obra Les Plus AnciensTémoignages Profanes sur Jésus.
Para concluir, só mais uma achega de Léon E. Halkin em Initiation à la Critique Historique: «A história não pode pretender nem a verdade objectiva na evocação do passado, nem a codificação duma experiência directamente utilizável pelo homem» (Ob. cit., p. 104). Entre as fontes mais antigas sobre factos que hoje consideramos históricos, temos de considerar as alterações de sentido, as deformações de tradução, as imprecisões dos copistas como impossíveis de remover. Na obra L’Histoire et ses Méthodes, o historiador Samaran lembra a frequência das diferentes versões dos documentos históricos: «Há mais de 188 manuscritos medievais da Ilíada (…) 393 manuscritos das Enarrationes in Psalmos de S.to Agostinho (…) Ora cada manuscrito tem uma série de variantes; contam-se em 150.000 as do Novo Testamento» (Ob. cit., p. 1275).
Não há dúvida que as narrativas da pregação de Jesus foram escritas algumas décadas após a sua morte e ressurreição, pois a tradição cultural judaica era oral e não escrita. E JRS poderá ler, para mais informações elucidativas sobre o tema, o historiador Daniel Rops em A Vida Quotidiana na Palestina no Tempo de Jesus. Se os Apóstolos tinham ofícios mecânicos (e o próprio Jesus era carpinteiro) não era por esses ofícios serem, na época, de baixa condição social, como assegura JRS nas provas dadas pelo “historiador Noronha”, pois eram bem vistos pelas camadas mais cultas: «Todos os doutores da lei trabalhavam para ganhar a sua vida: R. Aquiba como lenhador, R. Joshua como carvoeiro, (…) e o grande R. Hillel era de tão modesta condição que, como servente de pedreiro, ganhava somente meio dinheiro por dia.» (D. Rops, Ob.cit., p.162).
8. Em O Último Segredo, JRS procura fazer crer que os apóstolos e seus discípulos esperavam Jesus após a morte para estabelecer, em breve, “o Reino” de seu Pai na terra. Como tal não acontecera, os discípulos dos apóstolos, pois estes já tinham morrido, começaram a escrever a sua doutrina para que não fosse esquecida. O ponto de partida de JRS são as próprias palavras de Jesus quando anunciava que os tempos do fim estavam próximos e viria, célere, estabelecer este “Reino” na terra. Ora este “Novo Reino” de que falava Jesus começava a construir-se a partir dele próprio, não materialmente. O “Novo Reino” partia dos corações das pessoas que seguissem a sua pedagogia de vida. Um mundo novo todo feito de amor, um mundo humano fraternal e puro seria erguido se os seus ensinamentos fossem seguidos. Os apóstolos deveriam ensinar ao mundo judeu e ao mundo pagão, e em particular ao vastíssimo Império Romano, a doutrina nova («até aos confins do mundo»). Como escreve J. Tolentino de Mendonça em Pai-Nosso que Estais na Terra, Deus torna-se presente através de Jesus: «Onde Jesus Cristo estava, o Reino de Deus mostrava-se (…) Jesus viveu a sua vida como manifestação extraordinária do Reino» (Ob. cit., p.89).
O Reino de Deus estaria inscrito nas potencialidades que as palavras de Jesus começavam a erguer num mundo escasso, pobre devido à ausência de uma Paternidade celestial toda feita de amor. Cada homem que seguisse a sábia Palavra de Jesus começaria a ser uma pedra do grande “Templo”, ou seja, do “Reino de Deus”. Este “Reino”, de que era arauto o Filho de Deus, começara a ser desenhado desde o chamamento dos primeiros apóstolos: «O Reino de Deus está dentro de vós» (Lc 17, 20). O Último Segredo de JRS, através da personagem “Noronha”, apresenta uma sucessão exorbitante de provas para refutar o carácter divino de Jesus Cristo, que citámos acima. Ora, contrariamente ao que aventa JRS, Cristo significando o Ungido, é uma expressão usada como atributo de Jesus e não como patronímico (com o qual JRS faz até uma paródia de claro mau gosto). Quando “a personagem Noronha” se refere, como a uma aberração, ao “Reino de Deus”, está a considerá-lo de natureza puramente material. Por isso, “o historiador Noronha” (JRS) diz que os ricos, os poderosos, os perseguidores, de acordo com as referidas palavras de Jesus (através da leitura dos Evangelistas), vão «inverter os seus papéis» e tornar-se pobres, sem poder, perseguidos (diz “Noronha”). Ora, esta inversão não pode ser material como JRS (ou “Noronha”) procura fazer crer. Lembremos apenas algumas palavras de Jesus: «Depois, direi á minha alma: Alma, tens muitos bens em depósito para muitos anos; descansa, bebe, come, regala-te. Deus, porém, disse-lhe: Insensato! Nesta mesma noite, pedir-te-ão a tua alma; e o que acumulaste para quem será? Assim acontecerá ao que entesoura para si e não é rico em relação a Deus» (Lc 12, 19-21)
9. As provas a que recorre JRS (“a personagem Noronha”) são falaciosas porque num lugar ou “Reino” de santidade (ou virtude absoluta) não pode haver mal, pobreza, injustiça, vingança ou qualquer atitude persecutória. Este “Reino” de que fala Jesus só pode ser de natureza, espiritualmente, santa. Numa atitude, pelo menos aparentemente, perversa, escreve o “historiador Noronha”: «A humildade praticada hoje era uma forma de as pessoas se tornarem poderosas mais tarde e subjugarem as que agora eram poderosas e mais tarde iriam ficar fracas» (p.321). Porque o “Reino de Deus” é de natureza espiritual e não físico-material (ou de acordo com as leis da física deste universo), a interpretação da frase «o Reino de Deus está perto: Arrependei-vos e acreditai na boa nova» foi deformada no seu sentido pelo “historiador Noronha”. Lembramos a JRS apenas algumas frases que atestam a espiritualidade do “Reino de Deus” e não a sua materialidade (segundo JRS) e que Jesus claramente revela: «Onde estiver o vosso tesouro, aí estará, também, o vosso coração» (Lc 12, 34), a «porta é estreita» (Lc 13, 24);. Estas frases são frases de natureza espiritual e não de cariz material ou concreta.
O “Reino” que Jesus anuncia é espiritual: «Na ressurreição nem os homens terão mulheres nem as mulheres maridos, mas serão como anjos de Deus no céu» (Mt 22, 30); «Não vos preocupeis quanto à vossa vida (…), pois a vida é mais que o alimento e o corpo mais que o vestuário» (Lc 12, 22-23). O próprio Filho de Deus divulgou e mandou divulgar («Ide e ensinai o que eu vos ensinei») ao mundo o que dissera aos apóstolos, pela exclusiva vontade desse mesmo Deus que queria, no seu “Reino”, todos os homens que fossem capazes de viver vencendo a tentação do mal, ou, arrependendo-se daquilo que tinha feito. Lembremos as palavras de Jesus: «Acumular tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem os corroem, nem os ladrões arrombam os muros a fim de os roubar» (Mt 6, 19). Ou ainda: «Haverá mais alegria no Céu por um só pecador que se arrependa do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento» (Lc 15, 7).
10. Quando o “historiador Noronha” apresenta um número de provas que passam sempre pelas longuíssimas citações evangélicas (ou bíblicas em geral) há a acusação de que os cristãos escreveram aquelas coisas nos evangelhos ou nas epístolas (por exemplo, Paulo de Tarso) sem escrúpulos, sem se preocuparem com a verdade dos acontecimentos, mas só porque queriam enganar. A trave mestra do romance O Último Segredo de JRS é a acusação (sem defesa consistente) de que os primeiros cristãos, os apóstolos, os discípulos destes, os padres da Igreja, os copistas, etc., forjavam frases cheias de ambiguidade, de explicações fraudulentas, de invenções, palavras de sentidos duplos, contradições em cima de contradições, tudo ao serviço de alcançarem mais adeptos, continuadores daquelas crendices por onde não passava uma réstia de honestidade.
Mas perguntamos a JRS: Que interesse teria S. Paulo em, como ele deixou escrito, «suportar trabalhos, prisões, açoites, frequentes perigos de morte»? E também de por «três vezes ter sido açoitado com varas, uma vez apedrejado, viagens sem conta, exposto a perigos nos rios, perigos de salteadores, perigos da parte dos meus concidadãos, perigos dos pagãos, perigos na cidade, perigos no mar, perigos entre os falsos irmãos» (2 Cor 11, 23-26)? Os mártires, como o foram S. Paulo e S. Pedro (morte por crucificação, como Jesus), Santo Estêvão (lapidado até à morte), Santa Cecília (decapitada), S. João de Brito (decapitado) e tantos outros ao longo de dois mil anos, mostram claramente como a fé cristã está muito acima de interesses egoístas, do alcance de bens, ou de honrarias materiais. A fé revelada, até serem capazes de se deixar torturar e morrer por ela, tinha uma única finalidade: dar testemunho da Verdade, essa Verdade desocultada pela Palavra de Jesus, Ele a confundir-se com o próprio “Reino” que proclamava. O “Reino estava próximo”, mas, como ensina Jesus: «Ninguém pode afirmar: Ei-lo aqui ou ali, pois o reino de Deus está dentro de vós» (Lc 17, 21). É claro que Jesus queria dizer que “o Reino de Deus” não ocupava lugar de ordem físico-material. E esse Deus do “Reino” que anuncia era, na verdade, um Pai, um Pai com um “Reino” de Amor, já e agora, sem ontem nem amanhã. Esse Amor que está presente, por exemplo, nestas palavras de Jesus: «Orai pelos que vos perseguem» (Mt 5, 44).
11. O Último Segredo de JRS é um romance que procura ser de tese. Mas, falta-lhe o domínio da arte ficcional para conseguir a osmose entre a sua tese anti-cristã e o romanesco. A sua arremetida contra o cristianismo é de uma violência insuspeitada, em JRS. Todos os meios foram, lamentavelmente, válidos, para atingir o objectivo maior: cravejar uma espada de morte no peito ensanguentado de Jesus, mesmo pregado na cruz, e naqueles que acreditam na sua Palavra. Não sei se, apesar da catadupa de provas dadas ao longo das 563 páginas deste livro, JRS terá conseguido que os leitores acreditem na sua aventura de pôr em questão o cristianismo através do descrédito (do rebaixamento), lançado sobre os documentos da linha herdada dos apóstolos de Jesus, que chegaram até aos nossos dias.
12. A fé nas palavras de Jesus não precisaria sequer de todas as Palavras que os testemunhos evangélicos puseram ao nosso dispor. E isto apesar de nenhuma das suas palavras apresentar as tão veneradas provas de JRS. Os verdadeiros cristãos sempre firmaram a sua fé na simplicidade, na transparência, na pureza daquele que revolucionou o sentido da condição humana. Lembrem-se as palavras de Jesus: «O espírito é que dá a vida, a carne não serve para nada. As palavras que Eu vos disse são espírito e vida» (Jo 6, 63). As Suas palavras eram ditas sem subterfúgios, sem escondidas intenções. As suas palavras só carregavam o peso da verdade que o Pai o incumbira de transmitir. Eram palavras ditas com a pureza de um coração que ama o Seu Pai celestial e que tem a missão de redimir os irmãos mais vulneráveis, mais fracos perante a tentação de praticar o mal. A missão de Jesus é uma epifania: as Suas palavras transmitiam a Verdade que Deus queria transmitir aos homens para que o seu “Reino estivesse próximo” de cada um deles, na hora do fim. Sobretudo, para que a sua vida não tivesse fim, para que tivessem a vida, e a vida em abundância.

28 de Fevereiro de 2012
Teresa Ferrer Passos



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III - CONTOS



OS MAGOS DO ORIENTE

E uns magos do Oriente, que conheciam os segredos dos astros, leram, ao observá-los, que tinha nascido na região de Jerusalém uma criança que viria a ser o Rei dos judeus e Salvador do mundo.

A noite estava fria, mas resolveram não perder um instante do tempo. Um tempo novo chegara sem esperarem. Só os astros cujas leis estudavam nas longas noites estreladas, lhes revelaram tão alta chegada. E o tempo até podia ser escasso para a viagem distante em busca do divino Menino. 

Como O desejavam conhecer e prestar-Lhe um juramento de fidelidade, puseram-se a caminho com alguns presentes, seguindo uma estrela a brilhar com mais intensidade do que as outras.

Era já longa a noite quando a estrela com brilho ainda mais intenso, iluminou um estábulo de animais. Bateram à porta e viram o Menino nos braços de Maria, Sua mãe, a sorrir, como se os conhecesse havia muito tempo.

Então, cheia de alegria por O ver sorrir-lhes, disse: “O Menino é o que procurais, o Salvador do mundo que nasceu também para vós, Magos do Oriente!” 

Dia de Reis/2016

                                                             Teresa Ferrer Passos


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O  PRIMEIRO  PAI  NATAL (1)

“Cânone da fé, imagem da mansidão, mestre
da continência, chegaste à região da verdade.
Pela humildade conseguiste o mais sublime,
pela pobreza o mais opulento.”
S. João Crisóstomo

      Aquela criança chorava, como Nicolau (2) nunca vira. Olhou-a impressionado. Procurando a causa de tanta tristeza, fez-lhe mil perguntas, mas ela a nenhuma respondeu. A resposta era apenas o choro. Um choro cada vez mais contido. Mais silencioso. Depois parou. E o bispo Nicolau viu-a adormecer de cansaço. De facto, Nicolau passara naquela rua da bela cidade de Bari, pela primeira vez na sua vida. E ficara deveras impressionado com o desalento daquela criança. É que este encontro fortuito, tão inesperado, passava-se precisamente quando começava a cair, ao de leve, a noite que era a antevéspera do Dia de Natal. Vendo a pobre criança a dormir, não a quis acordar e afastou-se para casa, angustiado.
      Já em casa, mal podia orar a Deus, coisa que fazia sempre com sereno entusiasmo. O choro daquela criança não saía dos seus ouvidos, mais do que isso, não saía do seu coração tocado por uma tristeza que lhe lembrava tantas outras crianças tristes, a chorar. Faltavam só dois dias para o Dia de Natal. 
      Depois daquele encontro que lhe fez tanta inquietação, acabou por se recolher para enfim repousar. Mas, o sono parecia que não chegava. Não podia adormecer ao pensar na criancinha daquela maneira a chorar e depois adormecida. Exausta. As horas, no sino da igreja, soavam, mas continuavam sempre iguais. Aquela insónia, aquela agitação entre as mantas que o aqueciam e deixavam enregelado, até parecia querer lembrar-lhe qualquer coisa. Faltaria acontecer algo de insólito na esfera do divino, ele que até já estava habituado?!
     “Será algum recado de Deus, será alguma palavra de Jesus, nestes dias tão próximos da Festa do seu Natal?...”, interrogava-se Nicolau, atormentado por ver que a vontade divina permanecia escondida do seu coração, sempre pronto a recebê-la... Depois, lembrava-se de que, quando era criança também chorava, mas chorava por ser de uma família rica, muito rica... Queria tanto ser pobre, pobre como aqueles meninos da rua, descalços e sem agasalhos, que via pela cidade de Mira, a cidade onde nascera, na distante Turquia.
      Havia já uma branda luz do amanhecer e o sono não chegava para o bispo Nicolau, nem mesmo que fosse só para sonhar que descobrira o desejo desse Deus, desse Deus tão escondido sempre. E como esse Deus, que era o nosso verdadeiro Pai, sempre se soubera esconder, sob o nome dos profetas, sob o nome de Jesus, sob o nome dos seus filhos mais pobres, dos mais pecadores ou dos mais santos e também sob a forma de uma estrela a indicar o estábulo do Nascimento de Jesus, ou sob a forma de pomba planando no azul sobre o rio Jordão na hora alta do Seu Baptismo.
      Cansado de tanto pensar naquela noite que já lhe parecia longa demais, Nicolau ouviu o sino da sua igreja. Tocavam as seis horas da manhã! “Tenho de me levantar, depressa”, exclamou muito aflito. “Senão, a missa que celebro às sete… como a vou celebrar?!”. Foi no instante em que se levantava sem ter entendido ainda a vontade de Deus, como tanto desejava, que soou de novo o sino a dar as seis horas da manhã. Ficou intrigado. “De novo, soou de novo?”. Algo de extraordinário estaria ainda para acontecer?
      De súbito, viu, quase sem acreditar, a estreita faixa de luz da fresta da janela a transformar-se na imagem que o seu coração guardava do próprio Menino Jesus. E como o Menino Jesus lhe sorria, ainda mais lindo do que todas as imagens que a sua memória guardava! E, como estava ali, à sua frente, de carne e osso?! Logo lhe quis sorrir também, cheio de um espanto desmedido…
      Sem o deixar dizer fosse o que fosse, Jesus antecipou-se. Num sussurro cheio de ternura, disse: “Nicolau, és um coração com tesouros de amor dentro de ti. Observei como te foi terrível ver aquela criança a chorar! Ela tem fome e não tem roupa como tu tiveste! Como eu gostava que levasses a todas as crianças pobres que choram de fome e de falta de agasalhos, os bens de que dispões no teu bispado. Como eu gostava que lhes pusesses em suas casas o que comprarias com essas riquezas precisamente no Dia do meu Natal!”. “Que vozinha pura a dizer tais coisas e coisas tão lindas! Sim, tudo darei, como pedes, meu divino Jesus! E como gosto de o fazer!”. Respondeu Nicolau, entusiasmado.
      Ali estava o Menino-Deus, tão perto dele, no seu próprio quarto, a dizer-lhe as mais lindas palavras que já escutara! Como podia Ele, como podia, dar-lhe tal honra?! Tremia, os olhos muito abertos, as faces vermelhas de ansiedade, mas cheio de uma alegria nunca experimentada. De repente, a imagem do Menino escondeu-se na luz ténue da janela. Então, Nicolau deixou de o ver. Tudo ficou como antes no seu quarto. Pelo contrário, na sua alma nada ficou como era.
     O Menino Jesus ficou a sorrir no coração feliz de Nicolau, tal como sorria na hora imensa do seu Natal ao agradecer os presentes que os pastores da Judeia e os magos vindos da Arábia e da Babilónia lhe levavam (os cestinhos com mel, figos e uvas, as roupinhas de púrpura com rendas e bordados, o incenso, o ouro e a mirra). Como essa lembrança lhe ficara gravada! E como esta proposta do Menino-Deus a ele dirigida, poderia, dentro dos séculos futuros, ser continuada por aqueles que O seguissem, a Ele, o Deus já não escondido, mas a revelar-se…
      Poucos instantes depois da divina aparição, o bispo Nicolau reconhecia no Menino Jesus que acabava de lhe aparecer, a criança que chorava naquela rua por onde passara à tardinha, antes de recolher ao Paço episcopal. A criança inconsolável era o Menino Jesus, era Ele mesmo! E estivera ali, a pedir-lhe, a ele, o serviço que Nicolau mais alegria teria em fazer.
      Sabia agora que apesar de velho iria fazer a coisa mais bela da sua vida: dar todas as riquezas do Paço episcopal às crianças.  Então, começou a pensar como o podia fazer sem que as crianças pudessem descobrir que era ele que lhes levava os agasalhos, os doces, e tantas outras coisas que nunca tinham provado? Tudo começaria com a distribuição de presentes às crianças pobres da sua cidade (onde fora escolhido bispo por um acaso Providencial, havia vários anos). Contudo, temia ser reconhecido como autor daquela ideia divina. Isso, não podia ser. Então, congeminou todo o dia como o iria fazer, sem que o povo desconfiasse dele. Ninguém devia saber que não era o próprio Deus-Menino a dar os presentes.
      De repente, Nicolau pensou que o melhor seria mascarar-se com uma das suas vestes vermelhas e pôr umas muito, muito longas barbas brancas. Ninguém o reconheceria, estava certo. Mas mesmo assim… Todo o cuidado era pouco. Para evitar ser descoberta a sua identidade, devia esconder-se melhor.
      Porque não fazê-lo de noite, subindo ele próprio aos baixos telhados das casinhas dos pobres com um longo e velho saco que, em parte, o encobriria? Se alguém o visse, pensou Nicolau, só podia perguntar: “Quem será? quem será? só pode ser ladrão… fujamos depressa”.
      Pelas chaminés das casinhas das crianças pobres, na véspera de Natal, pela noite dentro, deixaria escorregar, pela primeira vez, as prendinhas de Jesus, não dele! E “o Menino Jesus” estaria, pela primeira vez, mascarado de velho de barbas vestido de vermelho, naquele, mais do que nunca, Santo Natal.
      Na manhã seguinte, no Dia de Natal, as crianças abririam os embrulhos e veriam, com a alegria a transbordar dos seus corações, coisas com que tinham sempre sonhado e tão poucas vezes provado! A pobreza fora mais forte que os seus apetites e as suas extraordinárias fantasias.

Natal de 2012

Teresa Ferrer Passos



(1) Este conto inspira-se na figura do Pai Natal que o bispo Nicolau teria inventado para construir o verdadeiro Natal das crianças pobres. De um modo sagrado e puro, teria nascido a lenda dessa figura excêntrica e controversa, ainda viva nos nossos dias, que se chama o Pai Natal. Trata-se de uma figura mitológica a que se prendem as crianças para lhe pedirem prendas. A sociedade de consumo apropriou-se deste símbolo cativante para todos comprarem mais coisas, até desnecessárias. O Pai Natal é agora um ícone da sociedade da abundância. Mas quando Nicolau, escondido dos homens, como o próprio Deus, construiu este mascarado Menino-Jesus, estava longe desta evolução dessacralizada, tantas vezes longe de Deus e dos próprios homens. 

(2) São Nicolau (Pai Natal, Papai Noel ou Sant(o)a Claus) nasceu, no século III, em Mira (Turquia) e morreu em Bari (Itália) já no século IV, em 342 (6 de Dezembro). À sua morte já era considerado santo. Participou, com posições polémicas, no Concílio de Niceia (325). Com fama de taumaturgo, patrono das crianças e dos pobres, foi e é ainda muito venerado nos países do Leste da Europa. É o primeiro santo da Igreja (Católica, Ortodoxa e Copta) a preocupar-se com a educação e a moral das crianças e de suas mães.


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A MAIS LONGA VIAGEM


A viagem de Nazaré a Jerusalém era longa. Um cansaço estranho perturbou Maria. A jovem chegara a Jerusalém com o ventre tombado de peso. O tempo de o Menino nascer, parecia-lhe ter chegado naquela noite em que descobriu o Sol a rasar o horizonte até mais tarde do que era costume.

Pensou um pouco assustada que o Filho de Deus estava prestes a entrar no mundo, a circular entre trevas e luz. Ela recebera a dignidade de ser sua mãe. Ela sabia quanta responsabilidade recaia sobre os seus ombros. Naqueles momentos, sentiu que precisava de um lugar para oferecer à terra dos homens aquele corpinho lindo e de tanta fragilidade. As águas do rio que nela corria transbordavam das margens e manchavam-se de sangue rutilante. “O Menino não tardará”, pensou com um perfume a nardo, um perfume muito intenso, nas narinas. O anúncio da sua maternidade sacra envolta numa angélica asa estava ali, mais visível do que nunca.  Inscrita no seu ventre grávido, desde há nove meses. Agora, com o corpo disforme, enrolado e sem espaço, era urgente um lugar para se deitar e, assim, deixá-lo nascer.
Como ela já sentia o Menino pronto para romper a estreita faixa coberta de véus a soltarem-se entre os lábios do vento do deserto. Como uma imensa dor a vergava e abatia... “José, não é precisa uma hospedaria”, disse com a voz apagada.
“Não? Não é Ele o Filho de Deus?” interrogou José, abismado. “Pode ser um simples estábulo” respondeu Maria com a garganta rasgada de emoção. De súbito, José, gritou. “Ali está um estábulo! Não foi o que pediste?” “Sim, serve um estábulo, mesmo só com o calor de animais se aquece o Bom Menino!” respondeu Maria com a voz suave como um cântico a descer do céu.
Para a jovem Maria, a pequenez do espaço, os montinhos de palha, o respirar quente dos cordeiros aconchegavam mais do que a comodidade das ricas hospedarias. Ela sabia como o Pai do Menino, o Rei de todos os reis, gostaria de, com o exemplo do seu Filho, mostrar aos soberbos, quanto valia mais a simplicidade dos pobres do que as riquezas da terra. O Filho de Deus entrava no mundo como um pobre, mas um pobre imensamente amado, essa a única verdadeira riqueza do mundo.

Natal de 2011
Teresa Ferrer Passos






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ESTRELA DE NATAL


As estrelas seguiam o caminho do espaço sem fim. Sempre num rumo certo, sem mudança. Tudo era inteiro nas suas linhas. A vida rumava simples e eterna. A cada instante, a luz abrandava um pouco, mas era ainda tão vibrante o seu esplendor. Nada havia de imprevisto.
O tempo dividia-se. O tempo alargava-se. O tempo crescia, dando a cada estrela um ritmo sereno. As dimensões sempre curvas, iguais. Para quando uma nova vida, no universo? Nenhuma estrela sabia. E cada uma gostava de olhar o brilho encandeante das outras estrelas…
Numa noite escura como as outras, uma estrela, de tonalidade luminosa um pouco mais azulada do que as restantes, sentiu um clarão tão fulgurante a vir de um lugar desconhecido, que, de súbito, se começou a apagar.
Mesmo assim, teve tempo de ver que esse espaço fora pintado de verde-marinho e se parecia com um grande mar todo vestido de peixes, a saltitarem entre ondas, e rebolando-se em anéis de diamantes e espuma. Era um lugar muito pequeno, que não se confundia com os espaços vizinhos, apesar de se encontrar ali, tão perto…
A estrela, estonteada com o que via, extinguia-se, com rapidez. Mas novo mistério a prostrava em inquietação: no seu interior, tomava forma uma casinha com paredes de noite onde só dormia o bafo de duas pequenas ovelhas. E lá dentro, via-se um Menino que tinha inscrito o nome que se escrevia assim: “Jesus-o-Salvador”.
Cheia de espanto, a estrela perdia o pouco brilho que lhe ficara e, a entristecer como nunca antes, apagava-se a sua última chama de luz. Após a angústia desse instante, no seu cantinho mais recôndito, erguia-se uma outra luz: um fogo vivo nascia no seu interior. Sentiu, cheia de alegria, que nascia em si uma nova estrela, com um brilho ainda mais fulgurante que no tempo dos seus clarões quase infinitos. 
Ao mesmo tempo, no planeta Terra, uns pastores, olhando o céu da Palestina, viam nascer uma nova estrela com uma luz tão intensa que, fascinados, a seguiram. Parecia indicar-lhes um caminho e trilharam-no até verem uma casinha com paredes de noite e nela, a dormir, só o bafo de duas ovelhas. Resolveram entrar. Não viram mais que as ovelhas deitadas em palhas. Mas, penetrando mais para o seu interior, descobriram aquilo que não sabiam explicar: um Menino que se chamava precisamente “Jesus-o-Salvador”.
O Menino a embrulhar-se todo, como se frio tivesse, nas palhinhas do pequeno estábulo (como não o reconheceriam eles?) que não tinha janela nem porta. Era toda aberto para o grande espaço. Lá dentro, o que digo eu, lá não havia dentro, estava o Menino todo vestido com a imensa luz de uma estrela a nascer. Os bracinhos elevados para o Alto abraçavam a estrela que, com o Nascimento daquele Menino, na mesma hora, nascia.

Natal/2010            
                                                                Teresa Ferrer Passos



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IV - PEQUENA PEÇA DE TEATRO



AS PALHINHAS E O MENINO JESUS


(Os pastores discutem entre si onde se havia de deitar o menino, acabado de nascer. Um deles olha a manjedoira. Mostra-a à mãe. Ela acena afirmativa, toda iluminada de alegria. É Mateus quem o deita. Cobre-o com as palhinhas finas. O menino acomodado, de olhos cerrados, sente cada uma delas em todo o seu corpinho).


O MENINO − Oh suaves palhinhas… umas tão macias, outras tão quentinhas… com certeza o frio cobriu-se também com elas… e eu, como me enrosco em cada uma de vocês, depois de sair da esférica morada de minha mãe!


As palhinhas elevam-se devagar, com espanto. Como pode o menino, acabado de nascer, falar com elas? E logo decidem também falar-lhe, como fizera o menino, até antes de falar com a própria mãe.


PALHA OURO-VELHO Que honra falar com alguém tão pequenino e de tão alta estirpe, provindo de gente sábia e bela…como tu, menino acabado de nascer!

MENINO − Que palavras lindas estou a ouvir de uma tão frágil palhinha. Como gosto do teu grande esforço para me falares!

PALHA MAIS-DESFIADA (dirigindo-se ao menino) − És um menino acabado de nascer e já queres conhecer-nos, como se fossemos como tu és, um humano, esses humanos que possuem poderes que não entendemos…

PALHA OURO-VELHO (num esforço mil vezes maior do que o seu tamanho para que fosse ouvida) − Nunca escutei nada de semelhante da vaca ou do burro, que dos nossos filamentos se vêm alimentar todos os dias!

PALHA MAIS-DESFIADA − Os animais não sabem falar com o coração como o menino aqui deitado e, afinal, também não nos ligam nenhuma importância…

PALHA MANSINHA-DEMAIS (com tristeza) − Acham que nada valemos, que de nada importante somos capazes.

PALHA OURO-VELHO − Não saberão que até existimos para eles não morrerem de fome?!

PALHA MAIS-DESFIADA − Será que nem disso se apercebem? o que somos, é igual a nada entre os seus dentes, dentes que nem o sabor nos tomam, na sua voracidade…


Nesse instante, a palhinha Toda-Alongada sentiu a mãozinha do menino a puxá-la para os olhinhos semi-cerrados. E num impulso inesperado, estendeu-se neles como se nada pesasse.


O MENINO −  Como é bom o teu auxílio, Palha Toda-Alongada! sou ainda desajeitado nestas coisas da matéria. Pegar, tocar, sentir… que difícil é tudo isto do mundo das coisas, sobretudo das coisas mais pequenas como é o vosso aconchego…

PALHA TODA-ALONGADA − Nada te fiz de importante e que não merecesses!

PALHA MAIS-DESFIADA − Nada será demais para com este menino que nos dirigiu a palavra pela primeira vez desde que existimos, nós que apenas somos pobres fios de palha.

PALHA OURO-VELHO − A verdade é que somos simples demais para falar com um menino de humana natureza…

O MENINO (sem o mais ínfimo ruído) − Não sou só de natureza humana, mas também de divina natureza…

PALHA MAIS-DESFIADA (olhando, circunspecta, o menino) − Ah! não só humana mas também de divina natureza?!

PALHA TODA-ALONGADA − Como isso é estranho! tens um corpinho humano e, ao mesmo tempo, de divina natureza?! como pode ser?

PALHA OURO-VELHO (olhando o menino, de soslaio) − Minhas irmãs, duvidam daquele que, pela primeira vez desde que existimos, pôs em nós confiança?! talvez por ele ter essa altíssima natureza, quisesse logo falar connosco, o que nem os rudes animais que se alimentam de nós, querem!

O MENINO (cerrando mais os olhos) − Que nervosismo, mesmo agitação, estão a viver as palhinhas só porque ouviram no seu coração as minhas palavras, as minhas palavras que só podem ser escutadas por aqueles que são capazes de falar e ouvir com o coração!

PALHA TODA-ALONGADA − Ouvi-te de novo! agora percebo porque te escutamos! É que tu falas só com o teu coração… e como o teu coração ainda tão pequenino, acabado de nascer, transmite tanto amor e, logo por nós, as tuas companheiras e primeiras testemunhas no mundo, nós, digo eu, umas simples palhinhas de manjedoira, num apagado estábulo de uma hospedaria de Belém!

PALHA OURO-VELHO − Estou a viver, por todo o meu filamento, um sentimento que nunca imaginei, o sentimento da paz comigo própria… que força espantosa transborda do teu coração, meu pequenino, a entrar por nós adentro como um raio de trovoada, a cair na estrebaria e a incendiá-la toda!

PALHA MANSINHA-DEMAIS − Sinto-me uma palha ardente de amor por este menino! com um coração cheio de amor por nós… por nós, ressequidas ervas de tão ténue valor…

PALHA MAIS-DESFIADA − Ah, minhas irmãs, atenção! ele não é só humano; como disse, é também divino!

PALHA TODA-ALONGADA − Eu serei sempre sua testemunha fiel porque sendo o menino de natureza divina, aquela que está mais alto, nos valorizou; e como sabem nenhum humano tem tido a humildade suficiente para nos dar qualquer valor!

Ao ouvir estas palavras, o menino começa a esboçar um riso que acaba por se confundir com um choro quase inaudível. Entreabre, muito ao de leve, os olhos. O pastor Mateus, de joelhos, olha-o, atento, a cada instante. A mãe, a pequena distância, adormecera de cansaço.

PALHA OURO-VELHO (com entoação desgostosa) ─ O menino silenciou o seu coração connosco… não terá gostado de alguma das nossas palavras?!

PALHA MANSINHA-DEMAIS ─ Acho que nada dissemos que lhe pudesse desagradar… eu duvidei, sim, um pouco, mas comecei a acreditar nessa sua natureza divina, precisamente porque ele, acabado de nascer, e pertencendo ao distante divino, logo quis falar-nos!

PALHA MAIS-DESFIADA − A nós, em primeiro lugar, talvez por sermos as mais desprezadas ervas da criação, os homens nos arrancam da terra onde vivíamos e nos deixam morrer pela segunda vez debaixo do sol ardente para depois ainda voltarmos a morrer pela terceira vez entre os dentes dos carneiros felpudos a berrar, dos burros a sacudir as moscas e das vacas indiferentes ao seu doce leite. 

PALHA OURO-VELHO − Logo emendaste o erro da tua dúvida, mas não sabes se o magoaste com a tua reserva quanto a ser ele também divino.

PALHA MUITO-ALONGADA − Eu também tive dúvidas acerca da sua natureza divina; mas que saudade já tenho do seu coração pronto a envolver-nos em estatuto maior, bem maior do que aquele que até agora nos foi dado…

PALHA MAIS-DESFIADA −  Seja qual for a razão do seu silêncio connosco, também já tenho saudade desses primeiros esgares de amor para cada uma de nós, tão pobres de espírito e indignas da sua atenção, mesmo que ele fosse apenas de natureza humana...

PALHA TODA-ALONGADA − Todo ele era sorriso cheio de afecto pela nossa presença junto dele, sem ligar à nossa baixa condição de palhinhas…achou-nos tão apagadas neste mundo que nos quis compensar, e como nos compensou de verdade!

PALHA MANSINHA-DEMAIS (com ar assustado) − …falando connosco elevou-nos até ao sagrado, à divina natureza! lembrar-me eu dos pastores pretensiosos, que nem sequer nos olham ao encherem com os nossos finíssimos corpos a manjedoira, todas as manhãs!

PALHA OURO-VELHO − E os não menos indiferentes animais que não se preocupam com o nosso fim nas suas barrigas, nem sequer por nos verem tão frágeis e sempre ao dispor dos seus desejos…

O MENINO (ficando sério, de súbito) − Não estou ofendido, não…sei que nunca vos deram afecto porque o valor de uma palhinha parece aos olhos do mundo muito insignificante…


O menino afastou a palhinha Toda-Alongada dos seus olhinhos, já a tentarem romper a luz amena da manhã.


PALHA TODA-ALONGADA − Não ouviram? o menino voltou! que alegria sentir-lhe o corpinho dócil, a pele ávida de calor, os dedinhos retorcendo-se nos nossos fios, agora só envolvidos no seu coração de amor a rodos!

PALHA MANSINHA-DEMAIS – Como me sinto alguém, como já não me preocupa a tripla morte, só por o menino nos olhar com o seu coração divino, e, agora até me parece que é bem mais divino do que humano...

PALHA MAIS-DESFIADA – Só pode ser divino, como ele próprio nos disse com o seu coração pequenino.

PALHA TODA-ALONGADA −  Eu tenho a certeza de que o menino, se fosse só humano… não nos envolveria com tanta subtileza no seu coração de amor.

O MENINO – Como estou contente porque acreditam em mim, acreditam na minha palavra, a soprar tão ao de leve do meu coração; mereceram ser os primeiros seres a quem entreguei a minha palavra, a palavra do meu Pai, o Criador de todo o Universo, e não só da Terra!

PALHA OURO-VELHO (inclinando-se para a Palha Toda-Alongada) – Que humilde é o teu coração, tu que és o Filho do Criador de tudo o que existe no Universo…

PALHA MANSINHA-DEMAIS – Estou aqui toda para ti, menino portador de tanto amor, o amor imenso vazado no teu coração, pelo Pai… só quero saber como te podemos recompensar da tua generosidade.

PALHA MAIS-DESFIADA – A sensação de estar junto de um coração a bater com a graça de uma criatura que vem do Altíssimo Criador…

PALHA TODA-ALONGADA − E como é diferente dos seres que estão muito abaixo d’Ele… como é humilde!

MENINO – Foi com humildade que meu Pai criou todas as coisas; por isso ele me recomendou que começasse por vos falar e seriam assim as primeiras testemunhas da minha natureza divina!


SEREMOS AS TUAS MAIORES TESTEMUNHAS, ATÉ AO FIM DOS TEMPOS! FOMOS NÓS QUEM PRIMEIRO TE ESCUTOU! QUEM SOUBE, EM PRIMEIRO LUGAR, QUE ERAS DE ORIGEM DIVINA! QUEM PRIMEIRO ACREDITOU EM TAL ORIGEM! (respondem, em coro, todas as palhinhas da manjedoira, onde o menino se acalenta e sente feliz, no dia em que chega ao mundo das humanas criaturas).

Esta peça foi concluída em 23 de Dezembro de 2008

Teresa Ferrer Passos










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