O que é o materialismo?


ÍNDICE
1 - Ao telefone com o Professor Maquinal
2 - Carta ao Professor Maquinal
3 - Newton e os trogloditas
4 - O planeta dos macacos

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AO TELEFONE COM O PROFESSOR MAQUINAL

Bom dia. Estou a falar com o Senhor Professor Maquinal? … Como está? Daqui fala o José Ideal. O Senhor Professor não se deve lembrar de mim, mas, se me desse um minuto, gostava de lhe dar uma palavrinha. … Obrigado. É o seguinte. Há coisa de uns dois anos tivemos uma pequena discussão. … Percebo o seu espanto. Como é que podemos ter discutido se não nos conhecemos? Eu explico. Foi num daqueles fóruns que alguns canais de televisão promovem. O Senhor Professor tinha lá ido falar do seu último livro. No fim da entrevista abriram a antena a qualquer telespectador que lhe quisesse colocar questões. … Sim, foi aí mesmo, vejo que se lembra. Eu tinha ficado um pouco espantado pelo à vontade com que o Senhor Professor dizia que somos todos robots e tentei provar-lhe que estava errado, mas o Senhor Professor começou a ficar muito nervoso, e disse que se sentia ofendido por eu estar a pôr em causa o trabalho de milhares de cientistas em todo o mundo que lutam incessantemente para implementar sistemas de inteligência artificial indistinguíveis do ser humano … Claro que sim, claro que sim, mas eu na altura pensava de outro modo, era completamente insensato, e é por agora o reconhecer que lhe estou a telefonar. Na realidade queria apenas apresentar-lhe as minhas desculpas por aquele incidente de há dois anos e dizer-lhe que, graças ao seu livro, que acabei por comprar, me converti plenamente às suas teses. Agora também acredito ‒ melhor, tenho a certeza ‒  que sou um robot. … É isso, é isso, não sei como alguma vez pude duvidar. … Exactamente. E eu por acaso até me lembro de ter pensado na altura, na minha insensatez, qualquer coisa deste género: “já vi muitos filmes de ficção científica em que há robots que ficam desesperados quando lhes revelam que não são seres humanos, mas nunca tinha visto um robot ficar ofendido por alguém lhe dizer que ele é uma pessoa!” … Não, não, desculpe, não estou a ironizar, isto pensei eu há dois anos quando … por amor de Deus, Senhor Professor … não, não acredito em Deus, isto são só frases feitas, não se exalte, Senhor Professor … não, Senhor Professor, não lhe quero provar com a minha ironia que não sou um robot. Eu li o seu livro. Sei que até um robot pode ter ironia. Aliás, só os robots têm ironia, porque todas as chamadas “pessoas” são na realidade robots. … Sim, eu acabei por perceber isso. A evolução foi-nos dotando de características que nos tornaram cada vez mais aptos à sobrevivência, e algumas dessas características acabam por ter manifestações que não são relevantes do ponto de vista da sobrevivência da espécie, como a ironia, embora também não lhe sejam prejudiciais. … Claro, tem toda a razão. Mas também é verdade que a evolução nos dotou de algumas características nocivas para a sobrevivência da espécie. … Olhe, por exemplo, uma tendência excessiva para fazer a guerra, e, ainda por cima, a capacidade intelectual para inventar armas cada vez mais mortíferas. … Sim, eu sei, isso só prova que não havia ninguém a planear fosse o que fosse. Tudo resultou de tentativas cegas, ao acaso. E, além disso, a evolução programou-nos para vivermos na selva. Quando de repente nos vemos numa cidade do século XXI, temos reacções desajustadas. … Eu sei. A culpa não foi da evolução. Nós é que começámos a fazer coisas que ninguém nos tinha programado para fazermos, e acabámos por inventar a civilização. … Não, Senhor Professor! Peço imensa desculpa! Não quis insultar os seus antepassados! … Tem razão, não quis insultar mas insultei. Peço mais uma vez desculpa. … Eu percebo. Foi talvez um excesso de zelo da evolução. … Com certeza, com certeza, é excessivo falar em excesso. … Sim, Senhor Professor, mas em todo o caso, desculpe, mas … Não é isso. Mas é que a evolução foi talvez de uma prodigalidade, como direi, excessiva. … Excessiva não, já sei, desculpe, não se exalte. … Sim, mas é que, apesar de ter lido o seu livro de uma ponta à outra continuo a achar isto estranho: para quê tantas ideias disparatadas na nossa cabeça? Para quê tantos sonhos, tantas quimeras, tanto delírio? Afinal, o objectivo da evolução não era só tornar-nos mais aptos a comer bagas, fugir dos predadores e seduzir as fêmeas? … Desculpe! Desculpe! Fêmeas e machos, claro! … Com certeza! Já havia homossexualidade na pré-história, e sempre há-de haver, graças a Deus! … Senhor Professor, peço perdão, não quero ofendê-lo mais do que já o ofendi! Não é graças a Deus, é graças aos erros da evolução, era isso que eu queria dizer. … Não, não era isso que que queria dizer … Não grite, por favor. … Sim, fiz um raciocínio errado. Pensei que, uma vez que a homossexualidade não contribui muito para a sobrevivência da espécie, a evolução não poderia ter grande interesse em … Sim, Senhor Professor, eu agora também penso assim. … Tem toda a razão. As minhas ideias, além de obscurantistas, eram confusas. Não sabia muito bem se devíamos seguir a natureza ou contrariá-la. Acreditava num Bem e num Mal absolutos e omnipresentes, tanto na natureza como no ser humano. … Sim, só disparates. Mas mesmo nessa altura não tinha nada contra os homossexuais. O meu combate, embora insensato, era só contra os heterossexuais que promoviam estridentemente a causa da homossexualidade … Com certeza, não é estridência nenhuma … Não grite, Senhor Professor. … Claro, não é estridência nenhuma, é só o natural arrebatamento de qualquer ser humano ao lutar por uma causa em que acredita. … Sim, Senhor Professor, desculpe mais uma vez, eu queria dizer “o natural arrebatamento de qualquer robot ao lutar por uma causa em que acredita”. … Mas não precisa gritar. … Tem toda a razão. E além disso foi muito instrutivo falar consigo. Mas agora não o incomodo mais, Senhor Professor. … Sim, terei muito gosto em ir assistir ao lançamento do seu próximo livro. Como se irá chamar? … Nesse caso, terei o prazer de o conhecer pessoalmente no dia do lançamento de A Mecânica da Empatia ‒ para uma valorização da ideia de Fraternidade à luz das mais recentes descobertas da neurociência.

10/5/2015

Fernando Henrique de Passos

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CARTA AO PROFESSOR MAQUINAL

Caro Professor Maquinal

A nossa conversa telefónica de há dias fez-me cair em mim e perceber que continuo seu adversário ‒ tão seu adversário como de todos os outros fundamentalismos religiosos. Repare que lhe chamo “fundamentalismo”, e não “fundamentalista”, porque não combato pessoas, apenas ideias e, na verdade, o senhor não passa de uma ideia criada por mim, pois não há nenhum materialista tão estúpido como o Professor Maquinal.

Pedir-lhe-ia desculpa de o ter chamado a uma existência tão breve e tão despida de sentido, não se desse o caso de o senhor parecer regozijar-se com a falta de sentido que julga descobrir na existência, o que o levará certamente a não lamentar o facto de a sua própria existência se reduzir à exiguidade de um telefonema e de uma carta. Como julgo conhecê-lo bem, presumo, no entanto, que não aprecie a inclusão que faço do seu nome no rol dos fundamentalismos religiosos, pelo que passo de seguida a justificar-me.

Não se trata de sofisma, ardil de argumentador hábil, que distorce o sentido das palavras para fazer crer que os argumentos do adversário se viram contra ele próprio. Nada disso ‒ acredito mesmo no que digo e vou tentar explicar porquê.

O senhor não nega que o sentimento religioso do chamado “homem arcaico” era genuíno, pois não? Ora, o senhor sabe melhor do que eu que os nossos cérebros não mudaram muito desde o tempo do homem arcaico, devido ao facto de a evolução biológica ser muito lenta em comparação com a evolução da civilização. Então, se no homem arcaico havia esse “instinto” ‒ se podemos chamar assim ao impulso que leva à procura da experiência religiosa ‒ é quase certo que o senhor também nasceu com ele.

Simplesmente, o Professor Maquinal não só nasceu como cresceu, viveu e continua a viver num mundo completamente diferente do mundo do homem arcaico, e por isso o seu instinto religioso vai manifestar-se também de uma forma completamente diferente, tão diferente que parece quase o oposto do instinto religioso do homem arcaico.

No entanto, a crença na existência de uma entidade Todo-poderosa, que o ultrapassa completamente, ao pé da qual o Senhor Professor não é nada, essa crença permanece intacta na sua teoria de que não temos vontade própria, e de que não passamos de ínfimas partículas arrastadas pelo movimento de uma máquina colossal e imutável, sobre a qual não temos qualquer controlo, mesmo se julgamos ter ‒ a grande máquina constituída pelo universo e pelas suas leis inexoráveis.

Essa máquina é o seu Deus, Senhor Professor, e eu inclino-me perante si, porque em comparação consigo eu sou quase um ateu: por um lado, o Deus em que eu acredito não é Todo-poderoso; por outro lado, eu acredito no Ser Humano muito mais do que o Senhor Professor; eu acredito que o Ser Humano é livre e tem um papel a desempenhar; eu acredito que Deus precisa tanto de nós como nós dele.

Há consequências práticas do facto de acreditarmos em deuses tão diferentes. O Senhor Professor aconselha: “Gozem a vida! Aproveitem enquanto cá estão!” Ou seja, o senhor convida-nos e incita-nos a deixarmo-nos escravizar pelo seu Deus, esse Deus que não é outro senão o gigantesco maquinismo das leis naturais, as quais nos impelem sem cessar no sentido da busca do prazer e da fuga da dor.

Mas eu, repito, ao pé de si pareço um ímpio, porque me afirmo livre, porque recusaria ser escravo do meu Deus, se ele porventura como seu escravo me quisesse. Mas sou também mais feliz do que você, pois o meu Deus não exige de mim seja o que for, tão só propõe: propõe-me um pacto de amizade tão justo para os dois, que eu não consigo fazer mais do que aceitá-lo.

Você não existe mesmo, Professor Maquinal. Os materialistas de carne e osso são inteligentes, são tão inteligentes que mal cabem dentro dessa apertada designação, ou dentro de outro “ismo” qualquer. Einstein, por exemplo, tinha esse sentimento de reverência perante a máquina do mundo e perante a inexorabilidade do decurso da sua evolução, em que acreditava profundamente, mas esse sentimento, ao contrário do que se passa consigo, usava-o ele para se libertar da tirania do egoísmo. Ou seja, servia-se do sentimento da sua pequenez para se engrandecer, para se erguer acima da condição de verme, e não para se autojustificar por permanecer na lama.

Lamento tê-lo incomodado, caro Professor Maquinal. Lamento tê-lo tirado do limbo da existência potencial, sem sequer lhe poder oferecer em troca uma existência real, porque o senhor é demasiado absurdo para poder realmente existir. Entretanto, desejo-lhe que goze o melhor possível da única existência que os meus escassos poderes lhe podem conferir, a fictícia existência dos personagens de ficção.

Com os melhores cumprimentos,

F. H. P.

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NEWTON E OS TROGLODITAS

Nos tempos que correm, os intelectuais materialistas  têm o hábito de classificar como “trogloditas” as pessoas de ideologia mais conservadora e tradicionalista, querendo com aquela palavra significar o atrasadíssimo estádio em que, segundo eles, essas pessoas se encontram ainda, em comparação com eles próprios, convencidos que estão de terem finalmente percebido o que é o ser humano e o mundo onde nasce, vive e morre.

A sua raiva dirige-se especialmente contra a religião, ou “crendice”, como lhe chamam. O que diriam então de alguém como Newton?

A ciência moderna, por eles enaltecida como principal agente da libertação do ser humano, ao tirá-lo das trevas milenares em que se encontrava, foi criada sobretudo por crentes. Se quisermos salientar nomes, a revolução que culmina com a nova visão do mundo oferecida pela agora chamada “mecânica clássica”, está essencialmente ligada a quatro homens: Copérnico, Galileu, Kepler e Newton (por ordem de “entrada em cena”). Todos eram homens de fé, e o primeiro era até monge, mas o caso mais interessante é o de Newton.

Newton comparou-se um dia a um menino brincando à beira-mar com pequenos seixos polidos, enquanto à sua frente se estendia o infinito oceano da verdade. Por outras palavras: para ele, as leis do mundo material que ia descobrindo, como a lei da gravitação universal, ou o facto de a luz branca ser uma mistura de todas as outras cores, não passavam de curiosidades, coisas engraçadas mas insignificantes, se comparadas com o único mistério verdadeiramente importante, o mistério da existência humana.

(Já agora um facto que talvez muitas pessoas desconheçam: coerente com a ideia expressa no parágrafo anterior, Newton dedicou mais anos da sua vida ao estudo da Bíblia do que ao estudo dos fenómenos naturais.)

Quem é o troglodita? Quem descobre a lei da gravitação universal e a encara como uma mera curiosidade, ou quem aprende a lei da gravitação universal que outro descobriu, e acredita depois que toda a existência humana se resume ao somatório de pequeninas leis sem sentido semelhante a essa?

7/6/2015

Fernando Henrique de Passos

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O PLANETA DOS MACACOS

O primeiro ser humano foi o primeiro macaco que perguntou “O que estou eu a fazer aqui?”.

(Logo alguns macacos – os mais inteligentes – responderam que a questão não tinha sentido.)

25-7-15

Fernando Henrique de Passos


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