Outras Direcções


(poesias por Fernando Henrique de Passos)

***

O BOSQUE ONDE DESCARTES FALECEU

A névoa perde o rumo.
Há urze rente ao chão.
Ao longe um fio-de-prumo
Pendendo em vão.

No chão um formigueiro.
E musgo nos penedos.
A faia e o pinheiro
Sopram segredos.

Há bússolas partidas,
Relógios em estilhaços
E réguas corroídas,
Rodas, compassos.

E líquenes azulados,
Raízes transparentes.
E fungos desbotados
E indiferentes.

E o cheiro dos medronhos
Embala e apazigua
Os indistintos sonhos
Da fria Lua.

25/1/2012

A ÚLTIMA FRONTEIRA

Eis-nos então na última fronteira.
Entre o sol que se extingue e a noite que se abeira,
O céu penetra o solo.
Eis o último cigarro que eu enrolo.
O fumo cinzento não se espalha,
Mas o vento arrasta areia, lixo e palha.

O carro não trabalha,
Mas o som do motor enche o deserto.
A tua mão que, firme, aperto,
Consegue ainda que eu não caia.
Ondula levemente a tua saia,
Ondula o teu cabelo,
E o horizonte agita o seu apelo,
Cada vez mais nítido e urgente.

Vamos em frente…

4/3/2012

TRÊS PASTORES PROJECTADOS NOS ESPAÇOS ABSTRACTOS

no dia 13 de Maio de 1917

Vós acedestes aos espaços que transgridem
As leis ordinárias da matéria;
Onde as ideias não referem substâncias,
Onde o fluir não tem fluente,
Onde as imagens não se casam com palavras,
Onde os sons não podem verberar,
Onde a luz se cristaliza nas pupilas.
Presenciastes a forma inominável,
A forma onde cabe o mundo inteiro.
Respirastes um ar não feito de moléculas,
Sentistes calor sem vibração dos átomos.
Tudo era ternura, tudo era presença.
Lágrimas sem água corriam por vós e sobre vós.
A mão meiga e sem carne era etérea seda em vossas faces.
O olhar transparente deixava ver as estrelas incontáveis.
Doçura em estado puro correu em vossas veias como um mel,
Sem a mediação que deve percorrer distâncias.
Um sentido, um caminho, uma vontade,
Eram enxertados em vós como videira.
E quando esse vento imóvel vos deixou,
Permanecendo em vós ao mesmo tempo
Por um sortilégio dos espaços abstractos,
Vós dissestes:
Mãe!

11/5/2012

NO CENTRO DO LADO DE FORA

À procura da maneira certa de existir
À beira de um regato
Ouvindo o devir do verão
O estalar dos caules secos sob os pés
O vibrar contínuo das cigarras
Que encadeia instantes sem fronteira
Sobrepondo o antes o depois e o agora

Aqui


Se soubesse como fazer parte

Ali

Fora do sono e do torpor
Onde os outros conhecem sem saber
A maneira certa de existir


Aqui

Eu penso que o segredo está em ser-se menos

Aqui

Eu penso que o segredo está em estar-se mais

Aqui

Eu penso que penso mais do que devia

Acerca da maneira certa de existir

24/6/2012

PERGUNTA

Paro à entrada da pergunta
Caverna tão vazia que a custo tem paredes
Povoada de palavras errantes no seu erro
Tão vazias como a própria caverna que as alberga
Cada uma contendo apenas mais palavras
Soltas ocas e distantes

Desolação
Sonho de respostas sob a forma
De grandes galerias resguardadas
Forradas do musgo de redes de palavras
Se houvesse palavras com sentido

Paro à entrada da pergunta
E todo o frio do universo me congela os lábios
E as galáxias são cemitérios de frases e cristais

Bastava entrar lá dentro
Atravessar a atmosfera rarefeita
Escutar os ecos das estrelas

Paro à entrada da pergunta
Não vou em frente
Seria preciso conseguir falar
Sem proferir palavras

E o mistério permanece
Esperando quem saiba interrogar o silêncio com silêncio
Para revelar a resposta oculta atrás do nada

29/12/2012

SÓ É PERMITIDA A ENTRADA A PESSOAS NÃO AUTORIZADAS

O vento que sai das frinchas do castelo
Tacteia a montanha, que se eriça.
O vento uiva, como num apelo;
Desce devagar a ponte levadiça.

Esboça-se no ar uma promessa,
Que logo o letreiro vem negar.
Desceu a ponte ‒ ninguém a atravessa;
Tudo é deserto, frio a soluçar.

O agrimensor, trágico, espera,
Consulta um alfarrábio poeirento
E pensa sem cessar. Ah, quem lhe dera
Poder dispensar o pensamento!

26/1/2013

A ESPADA DE FOGO DO ARCANJO

A espada de fogo do arcanjo
Na cidade fria à noite
Quando arrepios de ar se roçam furtivamente nas vidraças
Do lado de fora das casas aquecidas

A espada de fogo do arcanjo
Quando os eléctricos passam esmagando a chuva fina
De luzes apagadas e luminosos estalidos de faíscas
Quando o peso da massa de ferro nos carris
É a única coisa que é real

A espada de fogo do arcanjo
Reflectida nas poças de água límpida
E nos cristais dos lustres exteriores

O rosto cristalino do arcanjo
Olhou-se na montra de uma loja
Olhou para lá do seu reflexo

A espada de fogo do arcanjo
Desceu devagar sobre a cidade
Procurou vestígios do dragão

Toca um telefone
Dentro e fora das casas aquecidas
Dentro e fora das alamedas frias
Dentro e fora dos cérebros das crianças
Que espreitam atrás dos vidros húmidos
Tão húmidos do lado de fora do conforto

Toca um telefone
Os sonhos electrónicos do século
Interrompem os sonhos de granito
Da cidade erigida sobre a terra
Interrompem secos e neutrais
Os sonhos lentos das raízes
Dos prédios presos à saudade
Do tempo definido dos dragões

A espada de fogo do arcanjo
Quando o brilho noctívago da urbe
Por pouco não rasgou o véu do tempo

A espada de fogo do arcanjo
Quando o brilho da chama se extinguiu
Por falta de um dragão

31/3/2013

PARA LÁ DO ESPAÇO DAS PALAVRAS

Quase impossível

O som das palavras caindo uma após outra
Na superfície do lago subterrâneo
Gotas opacas
Calcário de palácios pré-humanos
Pré-história das amibas

Sei o caminho
Ao menos isso sei

Atravessar a maldição dos ecos
A luz fantasmagórica
As sombras nas paredes

Ao menos isso sei

Descer à pré-história das estrelas
Reflexos perdidos entre grutas
Milenar chão sedimentado
Pó de calcário
Pegadas de astronautas do passado

Ao menos isso sei

Conter o ímpeto de rasgar o espaço
Descer ainda
Procurar o centro da manhã
No reino onde o sol nunca nasceu
Palácios do tempo das fadas e dos reis
Gotas de calcário nas vidraças
O lençol de água sob a terra

Ao menos isso sei

Mergulhar
Nadar até ao fundo
Até à sombra dos reflexos
Centro da névoa naufragada

Voltar à tona d’água

Isso sei – daí para a frente não sei nada

20/4/2013

23:61

Esta noite não houve meia-noite,
Não houve fantasmas nem magia
Nem soaram as doze badaladas.
O coche que aguardava Cinderela
Em vão esperou que o baile terminasse.
As bruxas não saíram esta noite
Nem houve vassouras a voar
Nem poetas a namorar a lua
Nem amantes ao luar.
Cinderela não desce a escadaria.
(Já não está atrasada.)
Esta noite não houve meia-noite,
Amanhã talvez não haja madrugada.

30/4/2013

CARTOGRAFIA

Não esqueças o mapa das estradas,
O carreiro na orla dos carreiros,
As latitudes perturbadas,
Os labirintos estrangeiros.

Não esqueças o carro abandonado,
A inscrição no muro do convento,
O príncipe exilado,
Os murmúrios trazidos pelo vento.

E se te levam ao tesouro as várias pistas
Mas no cofre não há mais que um pergaminho,
Não desistas:
É outro mapa – retoma o teu caminho.

9/5/2013

UM NÓ NA PAZ DO SANTUÁRIO

Um nó na calma da igreja
Sou eu
A contracção dos nervos emboscados
O clamor das chamas
Chamando Orfeu

O peso do medo sobre as lajes
No fundo penumbrento da paz
A silhueta do frio
O círio apagado
Ardis de Satanás

Mas súbito o mistério
O risco de luz no ar pesado
O som da prata percutida
O cálice e a hóstia
O tecido do espaço restaurado…

13/7/2013

UM CAMINHO NO MEIO DOS CAMINHOS

Deve haver um caminho entre as palavras,
Entre as palavras, as coisas, as pessoas:
A maneira certa de existir.
Um caminho em que se deixe de pensar
Na maneira certa de existir
E se caminhe entre os caminhos
Sem pisar nenhum:
Deve haver um caminho no meio dos caminhos.
Um caminho que não conduza a mais lugares
Pois não será preciso
E todos os lugares serão presentes.
Um caminho onde só estar
Seja o mesmo que percorrer todo o caminho
E todas as metas virem ter connosco.
Um caminho em que olhar seja chegar
E em que todo o esforço para alcançar esse caminho
Seja tão só o esforço de deixar de fazer esforço.
Porque já estamos lá – resta sabê-lo.

27/7/2013

SUBÁTOMOS

Subtis restos de brumas e fantasmas
Sombras de seres que não existem
Espíritos perdidos pelo mundo
Perdidos entre coisas
Aprisionados na gelatinosa rede formada pelo espaço

Presságios não escutados pelos homens
Indícios de um tesouro desprezado
Por quem só sabe ver em toda a parte
Matéria matéria e mais matéria

19/10/2013

CAMPO DE FORÇAS

Estático defronte do mistério
Mastigas o ar gelado de Avalon.
O perigo é o conforto.
– Cuidado! – Um sofá a nor-noroeste!

As facas de chuva rasgam-te a camisa
E o vapor sobe do lago com volúpia.
– Cuidado! – O perigo é a poesia!

Extático defronte da miragem
Que dança no horizonte frio do desespero.
O perigo é bioquímico.
– Cuidado! – Um café na retaguarda!

Apaga o sonho ao pé da água –
O perigo é o fumo do pinheiro
Quando o sono deambula calmamente
Nos ramos translúcidos parados
Na superfície líquida do espelho.

29/1/2014

METAMORFOSE DAS PALAVRAS

Faz-te esponja.
Mergulha na pergunta.
Deixa-te embeber pela pergunta.

Vai mais longe:
Dissolve-te agora na pergunta
E esquece-te de ti, primeiro,
E depois dela.

Quando acordares
Procura entre os cristais
Depositados no fundo dos ecos dos teus sonhos.

A pergunta que olhaste tanto tempo
Aí habita agora
Na sua nova forma –
Isto é, como resposta.

1/2/2014

?

A interrogação é côncava e fechada:
Gruta uterina que constrói
A resposta há eras aguardada.

3/2/2014

CONTRA DESCARTES

Contemplem o espaço entre as palavras
O abismo branco luminoso
Onde a concatenação de sombras que aprisiona
As formas verdadeiras
Se torna frágil e se rompe.

Oiçam o fundo cintilante
O crepitar da luz fora das linhas
Que forçam nas coisas a ordem rectilínea
E desfiguram friamente
O suave ondular da harmonia.

Contemplem o espaço entre os sinais.
O resto é só o passatempo de um filósofo
Que não conseguia acreditar
Em mais do que aquilo que coubesse
Numa folha de papel quadriculado.

10/2/2014

TEOMETRIA

O teu retrato sobre a minha secretária
Com o mar em fundo
E a linha imaginária
Unindo o teu olhar à criação do mundo
Convenceram a luz que estremecia
A baptizar uma nova geometria.

11/2/2014

MANUSCRITO DO MAR MORTO

“A parte mais difícil foi o Monte das Oliveiras.
Suspirei de alívio quando Judas me entregou.”

11/2/2014

EM CASA DO SEM ABRIGO

Entra, há muitos anos que estou à tua espera.
Receei que nunca mais voltasses
E rezei sempre para que os longos anos de conforto
Não te apodrecessem a vontade.
Agora sei que és livre, finalmente,
Aqui ou debaixo do teu tecto.
Fica esta noite,
Falaremos das árvores e do vento.
Depois, já sabes:
A partir de hoje o mundo é todo teu.

11/2/2014

VIVE

Não tentes entender os mistérios –
Vive-os.
Lança-te do alto da falésia,
Mergulha no mar incandescente.
Não penses mais
Não penses mais
Não penses mais

19/2/2014

a K.

Franz, meu amigo,
Perdeste a eternidade por um triz:
Estiveste à porta do Castelo
Mas o teu ar pesado e infeliz
(e o mais que não revelo)
Dissuadiram o porteiro
De te dar a password da entrada.
Ensina-me a mim, um teu herdeiro,
A não fugir assim da alvorada.

20/2/2014

SINAIS

Os olhos sem luz do nado-morto
(No espelho do quarto do hotel do Porto)
O não descolar do aeroporto
(No espelho do quarto do hotel do Porto)
Os efeitos secundários do conforto
(No espelho do quarto do hotel do Porto)

Três riscos na cinza que cobria os dias
Três rasgões na terra, fecundando-a
Com sangue e profecias

26/2/2014

VIAGEM AO CENTRO DA TERRA

Eternidade é perceber que já chegámos,
Mesmo parecendo que estamos em viagem.

É ocupar o ponto geométrico
A partir de onde a perspectiva
Mostra o lugar natural de cada coisa
E o fluir sem esforço de nós e tudo o mais.

(Mas que impiedosa luta corpo a corpo,
A longa jornada de cada um rumo ao seu centro…)

2/3/2014

POSSE

Olha para ti com mais firmeza
Olha em teu redor com mais bondade
Abre as comportas da represa
Deixa-te alagar de realidade

6/3/2014

AS FRONTEIRAS DOS SERES
(para uma Teoria dos Conjuntos não cartesiana)

A velha marca fronteiriça,
Coberta de hera, escondida pelo mato,
Num assomo de paz e de preguiça
Desobedeceu às ordens de Renato.

Regiões contíguas – coisa estranha –
Hesitaram sobre o conceito de pertença.
(Como se, de Portugal e Espanha,
Nenhum soubesse de quem era Olivença.)

O mundo sorriu secretamente,
Aliviado da nitidez em excesso.
Passado e futuro entraram no presente,
Ínfimo ponto assim feito processo.

Sabedoria da pedra desgastada,
Vitória do todo sobre a parte:
Do rosto exacto de René Descartes
Não resta mais que a foto desfocada.

8/3/2014

AVISO

Se a catedral desabasse
No momento em que faltasse
Pôr só a pedra angular,
Um gume negro cortava
O caule que traz a luz
Ao Mundo, e que faz o dia,
E então o Mundo morria.

11/3/2014

TEORIA DA PERCOLAÇÃO

Um canal… Outro canal…
Microperfuração da massa empedernida,
Da alma atulhada de lixo em forma fóssil.
Um canal… Outro canal…
O esforço dos dias baptizados pela dor,
A broca fina escavando galerias,
O sonho de um caminho ininterrupto
Desde o Alto até ao coração.
Um canal… Outro canal…
– E a água corre, finalmente.
Ainda gota a gota, por enquanto,
Mas anunciando já a força da torrente
Que arrastará consigo o espaço-tempo
E nos trará o Reino que esperámos tanto.

13/3/2014

FRENTE A GODOT

A Brel e Beckett

Não esperem mais por ele,
Eu sei onde ele está:
«Sur la plaine, là-bas,
À hauteur des roseaux».
(Mas não é só o vento,
Como um de vós pensou.)

18/3/2014

À DISTÂNCIA DE UM SUSSURRO

Paro à entrada da pergunta.
Já parei em muitas mais entradas,
De muitas mais perguntas.
Jamais uma só me encorajou
A atravessar o limiar das suas sombras,
A pisar o musgo virginal,
A tactear no escuro o húmido tremor da sua respiração expectante.
Estou à entrada da pergunta.

2/4/2014

ENQUANTO NÃO CHEGAMOS

O teu centro é onde estás imóvel
E vês as coisas virem até ti
Sem teres de fazer esforço
A não ser o esforço para te soltares
Do maquinismo que se apoderou de ti
E que te impele
Na direcção das suas ridículas vontades.
Mas mesmo esse esforço, já não tem de ser feito –
Foi o esforço que fizeste durante os longos anos
Da longa caminhada até ti mesmo.

8/4/2014

CONTRA A DITADURA DO ESPAÇO
(contra Descartes e por Bergson)

Desorganiza o espaço
Confunde os vértices da rede de Descartes
Mistura as direcções
Dissolve as grelhas das tabelas
Desfolha os catálogos dos factos
Amacia os gumes das arestas

Atenta ao tempo sobretudo
E liberta-o das correntes
Em que cada elo é um lugar

7/5/2014

A FALSA PAZ DOS OBJECTOS

Procura a paz no desconforto,
A única paz capaz de ser autêntica,
A paz que está dentro de ti.
A outra, a que procuras no conforto,
Não está em lado algum,
A não ser em tudo o que te é mais exterior.

7/5/2014


MAREMOTO NO MAR MORTO

Maremoto no Mar Morto,
Porta milenar que se descerra,
Abismo aberto no leito do conforto,
Vulcão submarino abrasador
De um Deus pacífico na guerra
Mas violento em excesso no amor.

7/5/2014

RUMO AO SOL

Vencer as sombras: uma questão de paciência.
Primeiro, querer.
Depois, teimar,
Teimar até doer.
Vencer não vai ser hoje,
Nem amanhã, nem depois,
Nem dentro de um ano, nem de dois:
– Vai ser.

8/5/2014

GERADOR DE VAN DER GRAAF

Uma volta mais da manivela.
O espaço em torno da esfera carregada
Aguarda o grito de uma estrela,
Um estremecer de fada.

Uma volta mais da manivela.
A vibração do aço à beira de romper
Fende o azul metal da tela
Onde o pintor anota o decorrer

Da experimentação espiritual,
Enquanto o dono da capela
Não grava a fogo no vitral
A palavra que traz no seio dela

O sentido oculto e ancestral
Da volta final da manivela.

9/5/2014

AS CENTOPEIAS

Entram pela porta que tem escrito
«Medo das Centopeias».
São da mesmíssima matéria
De que são feitas as ideias,
Ou talvez ainda mais etéreas.

Se as deixares passear na tua mão,
O seu movimento aflito
Tornar-se-á um doce aquiescer
E sairão pela porta que tem escrito
«Cada um tem medo do que quer».

12/5/2014

A LUZ QUE VEM DO FUTURO

Ilusão de óptica
No interior da catacumba:
A nave de uma catedral futura e gótica
Nascendo da penumbra.

Crença translúcida
Seis séculos depois da catedral:
Não foi em vão
O sortilégio da luz sobre o vitral.

16/5/2014


A CAVERNA

A realidade não tem meios
Para o combate às suas sombras
Que se deixam trespassar como fantasmas
Permanecendo incólumes, ilesas.

Têm de ser as suas sombras
A demolirem-se a si próprias,
Até que, de sombras e de escombros,
E escombros de sombras e soberbas,
Possa emergir o renovado sol,
Soma brilhante de todos os mistérios,
De todas as penumbras,
De todos os becos escondidos,
De todas as noites sem luar,
De todas as luas sem ninguém.

31/5/2014

EVANGELHO SEGUNDO PLATÃO
(talvez apócrifo)

e o Verbo fez-se sombra
e habitou entre as sombras
e ensinou-as a procurarem dentro de si mesmas
a parte de não-sombra
e a reconduzi-la ao seio do Todo Indivisível
onde nunca deixou de se encontrar
mas que é ocultado pelas sombras

2/6/2014


À LUZ DO PARADOXO

Só as sombras agem sobre as sombras
Só elas podem libertar a luz
Mas sombra alguma pode fazer algo
Sem o brilho interno que a conduz

5/6/2014


ALÉM DA LUA

It’s like our visit to the moon
or to that other star
I guess you go for nothing
if you really want to go that far
                   Leonard Cohen

Deita fora o resto desse lastro
Se queres alcançar a estratosfera,
Depois a Lua, depois aqueloutro astro
Que há séculos orbita à tua espera.

Desfaz-te do excesso e do entulho,
Mergulha no espaço libertado,
E possas tu, após cada mergulho,
Voltar mais ágil, mais forte, renovado.

E se o teu tempo incita ao desencanto,
Não dês ouvidos ao canto dos jograis –
Se tens por meta um Espírito que é Santo
O muito longe não pode ser de mais.

18/8/2014

JORNADAS

A tua jornada em direcção ao centro de ti mesmo
A tua jornada em direcção a Deus
A tua jornada em direcção aos outros

– Três nomes diferentes para a mesma jornada

19/6/2014


SENTIDO

Abre os portões da tua casa
E não voltes a fechá-los nunca mais

Deixa a tua alma tornar-se igual à rua
E o teu respirar passar a ser o vento

Rasga essa membrana imaginária
Que te faz repetir desde que acordas
“Este sou eu, lá fora são os outros”

E quando a tua missão estiver cumprida,
Abre os braços, recebe a chuva branda,
Dissolve-te nas gotas indistintas,
Torna-te parte de algum rio,
Deixa-te arrastar até à foz
E mergulha enfim no vasto mar
Que és tu, que é Deus, que somos todos nós

24/6/2014

VEREIS O CÉU ABRIR-SE*

Constelações de fogo
Altares suspensos sobre o espaço
Sangue nobre colhido em taças de oiro
Espasmo do mármore ao toque azul da hóstia
Desertos negros riscados pela prata

O contacto da pele do pensamento
Com a carne hesitante e nervosa da existência efémera
Abala a estrutura rígida das coisas
Provoca a mudança de estado do real
Derrete a solidez satisfeita do sensível
Que, agora liquefeito, alaga violentamente
As margens demarcadas da lógica clássica

(O Estagirita esbraceja e S. Tomás
Debalde enseja lançar-lhe o seu auxílio.
Platão serve a Plotino,
Que sorve o suco dos frutos mais exóticos,
O açúcar do riso dos profetas
E a verde humidade das florestas
Onde o calor cozinha a novidade)

O Céu abriu-se na noite de Saint John
Entresílabas de séculos passados
E coches carregados de esmeraldas
E línguas de terras de além-mar
E cofres e caixas de Pandora
E o selo número sete protege o formigueiro
Mas eu suspeito que alguém já o quebrou

O Céu abriu-se, abriu-se tanto
Que nada já parece inteiro
Mas no auge do trágico e do espanto
Chegou ao fim a tinta no tinteiro

25/6/2014

DEUS NO DIVÃ

Imagine o que é mudar o mundo todo
A posição de cada estrela
De cada átomo
De cada pôr-do-sol

Imagine que rejeitou o livro de instruções
E tem de escrever um livro novo
Mas, sem papel,
Deve escrever por cima das linhas do antigo

Imagine o que é substituir
No corpo de cada ser que vive
Uma a uma as células minúsculas
(Tantas formigas, meu Deus, e tantos trevos!)

– Considera-se pois um demiurgo?

Só mando em mim
Mas os cometas obedecem-me
Quando os deixo atravessar a minha mente

29/6/2014

FRAGMENTO DE UM EVANGELHO PERDIDO

Não existo, propriamente
Sou apenas o ponto onde confluem
Todas as dores de todos os humanos
Todos os corpos contorcidos
Todos os gemidos de agonia
Todas as lágrimas das mães que perdem filhos
Toda a angústia de todos os porquês

Não sou só uma cruz
Sou biliões de cruzes por cada planeta
Onde uma vez surgiu a vida
E há infinitos mundos habitados

Eu sou a dor sem números de todo o Universo
E não, como pensais,
Os passos contados de uma via-sacra
Os três ou quatro pregos
A hora marcada do repouso
E a glória eterna após a Ascensão

Eterno é o Calvário
Estendido como papel mata-borrão
Por toda a extensão do tempo ilimitado
Estancando o sangue
Secando o pus e o sofrimento
De cada ferida aberta pelo Espaço
Que veio dividir o que era Uno

Ainda espero que alguém oiça o meu brado
E rasgue uma vez mais o véu do Templo
Que duas vezes deve ser fendido
Se acaso desejardes voltar a ver num só
Os dois Reinos um dia separados

30/6/2014


BOHM’S ADVICE

Quando o Espaço esquartejou o Ser
A Eternidade e o Tempo foram separados um do outro
E o Caminho Único tornou-se infinitamente bifurcado

Somos agora obrigados a escolher a cada instante
E as escolhas que fazemos não devem ser as certas
Pois não nos estão a levar ao reencontro

7/7/2014

DU CÔTÉ DE CHEZ BOHM

A Eternidade é ocultada pelo Espaço:
Cada segundo é feito de milímetros
Cada relógio é feito de compassos
Cada efeméride precisa de astrolábios

A Eternidade perde-se no medo
A Eternidade afoga-se na ânsia
E medo e ânsia ambos se alimentam
De conceitos básicos de geometria
(O monstro que está atrás do muro…
O tesouro que está no fim do mapa…)

Não espereis mais:
A Eternidade não está no fim do Tempo –
Ela é o próprio Tempo
Quando despido dos mantos pesados da distância

8/7/2014


SONETO NOVO

o incêndio de luz que se estende em todos os sentidos
dentro de mim fora de mim
purificando o já agora
e todo o tempo passado e que há-de vir

o crepitar voraz silencioso
a voz que fala sem palavras
a sabedoria dos cadernos virgens
a liquidez lúcida do espaço entre as ideias

escreve na linha interrompida!
põe mais uma letra!
lança a corda sobre o abismo inominável!

tacteia a luz se o brilho é muito forte
escorrega nos arcos e volutas
mastiga o som do éter luminífero

3/8/2014

ORAÇÃO SUPERFICIAL

Oh grandes peixes das águas profundíssimas
O tesouro dos textos telepáticos
Que nos fazíeis chegar pontualmente
Perdido parece por agora
Nos limos e lodos deste grande lago

No denso enredado das palavras ávidas
Que se propunham traduzir-vos
Perdida ficou vossa sageza antiga
Que nos falava com gestos de silêncio

Perdoai a nossa tacanhez
Enviai novamente o vosso auxílio
Pois sufocamos já
Em estreitos canais de altura rasa
Onde insensatos julgávamos prender
O infinito, o tudo, o além-tudo
Mas só nos prendemos a nós próprios

10/8/2014


VENTO

Tudo se desmorona excepto o vento.
E o frio que gela e arrepia
Atravessa as ruínas, a noite, o esquecimento,
Até abrir, num gesto que é quase violento,
As portas que vão dar ao novo dia.

11/8/2014


ÚLTIMO CREPÚSCULO


Na plataforma giratória,
No centro de todas as incógnitas,
No meio de naves que aterram e descolam
Em escala apressada entre geometrias,
O zumbido azul do escaravelho calmo
Caminhando pata ante pata até ao pôr-do-sol,
Seguindo a certeza rectilínea
Que aponta o horizonte licoroso de lâminas de luz
Onde imerge por uma noite apenas
A promessa do dia de amanhã.

25/8/2014

LUZ-DE-LAVA

a Alberto Caeiro

a luz-de-lava que brilha em cada ente
no seu murmurar eloquente e mudo
em todo o lado te fala do Vulcão
insensata razão do teu amor por tudo

2/9/2014

O FEITICEIRO TRANSPARENTE

O mago da praia sem idade
Vê a cada instante o universo inteiro
Conhece todas as cores da única verdade
E num perpétuo lusco-fusco de mosteiro
Vai entretecendo o tempo na eternidade

O bobo do parque dos narcisos
Procura espelhos nos olhos dos pardais
Ouve aplausos no chocalhar até dos próprios guizos
E a ânsia de ouvir cada vez mais
Torna-lhe os gestos febris e imprecisos

O drama todo do mundo
Vem do mágico e do pantomineiro
E do seu laço profundo:
Só pode agir o primeiro
Por meio do bailado do segundo

21/9/2014

QUINTA-FEIRA DA ESPIGA

Toma o tempo que quiseres.
Senta-te aqui e deixa-te arrastar
Pela contemplação desse mistério,
O grande torvelinho imóvel que te sorve,
Que te arranca as camadas do corpo e, uma a uma,
As recoloca depois na ordem certa.
Toma o tempo que quiseres, mas não perguntes
Que faço aqui no meio das papoilas?
Aguarda apenas que os sons do campanário
Deixem de ser exactos algarismos,
E que o óleo de novo se torne em aguarela
Na hora plena das doze badaladas
Fundidas num único sol-posto,
Prenúncio da derradeira madrugada,
Aquela que nunca terá fim.

29/9/2014

RESCALDO

Do grande incêndio de há quase dois mil anos
Que calcinou vontades egoístas
Libertando dos seus interiores sujos
Milhares de diamantes de pureza;
Do terramoto que fez ruir palácios
Mais cedo que o previsto
Salvando assim da morte os ocupantes;
Do vendaval escaldante
Que arrancou dos corpos suas vestes
E nus os lançou no longo caminho de regresso a casa;
Da cheia cujas águas cintilantes
Lavaram tanta chaga e podridão;
Do grande incêndio de há quase dois mil anos,
Do grande tumulto na ordem lógica das coisas,
Já só restam carvões quase apagados,
E por todo o lado despontam mais palácios,
E as roupagens cada vez mais ricas
Ocultam feridas tanto mais temíveis.

Senhor, porque não voltas?

16/10/2014

O TESTEMUNHO DAS OVELHAS

Lúcia à transparência da tarde adolescente
Docemente inclinada no ombro de Jesus
O cálice nos lábios sobre o peito a cruz
E a luz dos seus olhos tão pálida e diferente

22/10/2014

A DECOMPOSIÇÃO DO ARCO-ÍRIS

(carta aberta a Richard Dawkins)

Impossível prender o movimento:
As borboletas mortas na vitrina
Não são já borboletas.
As asas secas e esticadas
Não se misturam já na luz, modificando-a,
Fazendo nascer mais novidade
De cada instante novo.
Muito ao contrário:
A rede quadricular das posições
Daqueles cadáveres sem sentido
Captura os núcleos de mudança
Como milhões de peixes sufocando
Brutalmente arrancados ao seio do fluir
Das doces águas,
E o contemplar da colecção
Arrasta a nossa alma por um longo corredor néon gelado
Num ziguezague em linha recta
Entre museus e hospitais.

Borboletas da minha adolescência:
Pudesse eu devolver-vos à luz das florestas,
Ao ar perpetuamente renovado
Que crescia entre as agulhas de pinheiro
As flores do cardo agreste
E os muitos milhares de ervas-sem-ter-nome,
Para que o pó das vossas asas fecundasse,
Mesmo que tarde,
Mesmo passados quarenta anos,
As águas do rio que já secou,
Cansado de esperar a vida eterna,
O rio onde meu pai me levava pela mão,
Era eu criança,
E em cujas margens me ensinava a procurar
Por entre o doce marulhar da vida
Aquelas gotas de total silêncio
Que encerram todas as razões do universo.

Borboletas da minha adolescência:
Conjuro-vos!
Rebentai os vidros das vitrinas!
Batei de novo as asas!
Libertai-vos das pinças e do éter!
Voai até ao sol!

Trazei de lá,
Se quiserdes assim manifestar-me
Que me concedeis vosso perdão,
A prova de que Newton estava errado
E de que a luz branca é muito mais
Que um espectro envergonhado
De se ver nu no pó na cinza e frigidez
Do laboratório onde aguarda
A sentença à pena capital.

28/10/2014

A LÓGICA DE DEUS

a ser verdadeiro
o Princípio do Terceiro Excluído
excluiria do mundo a Santidade
que se situa na Terra de Ninguém
entre o Possível e o Impossível

11/11/2014


SONAR

AH!...

O cheiro a água fresca que vem do fundo do abismo
Envolto em reflexos de cores desconhecidas
E sons silenciosos como agulhas
(Prata caindo no veludo negro)
E o sabor do sal, da terra e das sementes
E sentir o óleo sobre a pele
Como memória nova de um baptismo

AH!...
(o eco no fundo do abismo…)

13/11/2014

O MAR E A POÇA

A casa velha, parada,
Desolada, milenar,
Tem aranhas na entrada
Onde ninguém quer entrar.

Tem uma poça cá fora
Onde se pode brincar.
Ninguém sabe quem lá mora
Nem ninguém lá quer morar.

Todos brincamos na poça,
Mesmo suja e lamacenta,
E fazemos até troça
De quem disso se lamenta.

Houve em tempos quem dissesse
Que a casa levava ao mar
A quem quer que se atrevesse
A abrir a porta e entrar.

Mas é tão triste a fachada
Da casa que leva ao mar,
Que a poça mais desgraçada
Lhe usurpa o justo lugar…

22/11/2014


DO GÉNESIS AO APOCALIPSE

Passeiam serpentes aos pares pelas arcadas,
Longas e lentas ondas reluzentes
Ofuscando a noite das estradas
Com bátegas de cor e estrondo de acidentes.

Relâmpagos no mar, neve na areia,
Cristais em brasa sobre a rocha fria,
Reacção ácida que desencadeia
A congeminação de um novo dia.

Quando chega enfim a madrugada
Há restos de cobras entre a espuma
Que se dissolvem na nova luz criada
Pelos amores do Verbo com a Bruma.

26/11/2014

EX NIHILO

Núcleos de vento testando a solidez
Da estrutura pálida do nada
(Borbulhar nocturno de perguntas
Em torno de casa abandonada).

Sombras de luz, aceno do Amor
Ao desígnio imóvel do vazio;
Eco da primeira madrugada;
Primeiro movimento, fugaz como arrepio.

Condensação da névoa matutina:
Barro depois, primeiro lodo;
Depois a vida, a dor e a alegria,
As novas formas que assumiu o Todo.

1/12/2014

DO DESVENDAR DOS VERSOS INVERNOSOS
ACHADOS NO VENTRE DE UM VULCÃO

Silenciosamente em direcção ao centro
─ O oco da árvore abandonada
Guardada pelo lagarto azul-demente

Vence quem se mover mais lentamente

5/12/2014

INVERNO

O frio é a paragem
A suspensão do espaço sobre a névoa
O fervilhar do pó e das galáxias
Que se detém no pensamento
Permitindo encontros entre mundos

6/12/2014

A EQUAÇÃO DE BUDA-THOMPSON

Calor é movimento.
Então, se fores arguto
Arrefecerás o pensamento
Até ao zero absoluto.

(Caso te agrade
Dar ao Tempo
As cristalinas formas da Eternidade.)

15/12/2014

A QUARTA LEI DA TERMODINÂMICA

É possível descer abaixo do zero absoluto,
Na verdade.
Surpresa: volta a haver calor.
(O calor imóvel da Eternidade.)

16/12/2014

DO NADA O TUDO

Perto das portas da Promessa
À esquerda o rio
A água espessa
O espaço frio
E o ângulo da cinza submersa:
Campo baldio
Que se atravessa
Até à berma do Vazio

(Imensidão de um vale de nebulosas
Laranjais à espera da manhã
Silêncio de virgem cortejada
Ensaiado langor de cortesã)

23/12/2014

A ILUSÃO DA ILUSÃO

Em torno da luz negra:
O fascínio das sombras recortadas nos espelhos,
O zero reflectido pela vírgula
Caleidoscopicamente produzindo
A ilusão do mundo da matéria.

(e no entanto
saber que há uma alma
por trás de cada rosto)

27/12/2014

BEIRA-TEMPO

Filosoficamente vagabundo
Encerro cardeais cartesianos
Dentro de lírios encarnados

Abro portas de palácios ermos
Pisando o chão de bosques onde há caves
Com janelas abertas sobre o mar

Ao pôr-do-sol, que é feito de zumbidos,
Apascento rebanhos de formigas
Que me levam por linhas sinuosas
Até às fontes do mel não poligónico

Paro o carro em frente dos medronhos
Debaixo de agulhas que se soltam
Dos pilares donde se ergueu o azul
Quando se uniu à última maré

29/12/2014

PRIMEIRO DIA

A luz ubíqua
O mar feito de luz
E as rochas, as pedras, as pessoas
E a poesia que nasce debaixo dos meus pés,
Matéria e Espírito:
Flocos de luz
Arrancados ao seio luminoso desta tarde
Beleza em fúria
A ânsia nos olhos e nas asas
Os pedaços de pão podre esfacelados
Pelos ávidos bicos das gaivotas

1/1/2015

PROJECTO

Do espaço fechado
Nas circunvalações dos medos e desejos
Até à superfície horizontal imensa,
Semeada de cor e primaveras,
Vibrante de luz e de presença.
Porque esperas?

1/3/2015

ACERCA DA MILENAR PERSISTÊNCIA DE UM RATIO DESFAVORÁVEL ENTRE A VARIÁVEL “NÚMERO DE PERGUNTAS RESPONDIDAS” E A VARIÁVEL “NÚMERO DE PERGUNTAS FORMULADAS”


Why do we never get an answer?
The Moody Blues

Pára…
Não te contraias mais…
Não queiras nada…

…Deixa-te estar em frente das perguntas,
No meio das perguntas.
Faz-te pergunta.
Tu mesmo és a pergunta.
Tu mesmo serias a resposta
Se acaso houvesse alguma forma de resposta
Que fosse mais do que a pergunta a que responde.

Não escrevas nada;
Não tentes deter as perguntas a meio do seu voo;
Deixa que esse ébrio bando de brandas borboletas
Repouse apenas quando a tua mente
Lhes oferecer poiso seguro:

A vastidão de uma planície
Sem tocas nem recantos
Nem inesperados ninhos de lacraus
Debaixo de pedras inocentes.


12/3/2015

A PÁSCOA DE S. FRANCISCO DE ASSIS

Guiado pelo teu louco amor por tudo
Penetraste o núcleo de dor da existência
Passando a porta estreita proposta por Jesus
Que te esperava lá
No centro de tudo
No cume do mundo
No centro de ti
No fundo desse abismo assustador
Que enlouquece aqueles que preferem não ter de o recordar

Voltaste trazendo as Santas Chagas
A marca da Verdade sobre a carne
E a certeza de que o segredo desvairado
Que o Mestre dos Mestres ensinara
É bem mais certo que o mais sensato teorema:

Renunciar a tudo é ter o mundo inteiro

19/3/2015

VONTADE DE DEUS, VONTADE DO HOMEM

Acontecerá dentro de ti
Exatamente aquilo que deve acontecer,
Bastando apenas
Que o teu papel seja cumprido.
E o teu papel é só um
Mas bem mais duro
Do que a forma da frase que o descreve:
Deixar que isso aconteça.

9/4/2015

LIÇÃO DE ARITMÉTICA

Aceita do mal apenas a dentada,
E nunca o unguento que faz passar a dor.

Recusa a passadeira de veludo,
O doce resvalar rumo ao inferno,
O conforto que embala e adormece
Para te acordar no outro dia
Nas masmorras de quem comprou teu nome
A troco de uma caixa de rapé.

Crê em mim ‒ tu vales mais que um espirro.

18/4/2015

VISÕES

Não acredites se um dia te disserem
Que o horizonte não existe.
De facto não é uma ilusão
A sagrada união de Terra e Céu.
Ilusório, sim, é crer que não há Alto,
E que o espaço vazio é frio e desolado
E fechado sobre nós qual mausoléu.

11/5/2015

PEREGRINAÇÃO

Mergulha os pés no chão ao caminhar.

Deixa que a terra, as pedras, o caminho
Subam por ti até que apaguem
O incêndio de sombras que te agita
E te esconde dos outros quando falas
E te esconde de ti próprio quando olhas
E julgas ver-te ali onde não estás.

Mergulha os pés no chão ao caminhar
E a cidade antiga que procuras, 
Vê-la-ás nascer dentro de ti.

23/8/2015


O SONHO FRANCISCANO

Eu sorvo a força das torrentes
Sem nunca mergulhar nas suas águas
Pois a Lagoa onde elas desaguam,
A minha casa ergui em suas margens.

Passei a prova de aceitar a dor,
Passei a porta que Jesus mostrara.
Do outro lado do horror,
A doce delícia delicada e rara:

Beber todas as flores de uma só taça
− O privilégio que antes foi dos reis –
É liberdade de quem viu a Graça
E livremente Lhe seguiu as Leis…

19/9/2015





* “Vereis o Céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do Homem.” (Jo 1, 51)

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