Nas Caves do Universo

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É IMPOSSÍVEL perturbar O Nada, QUE NEM SEQUER SABE QUE É ESCRITO COM MAIÚSCULA. COMO ESCALAR UMA ESCARPA VERTICAL DE GELO, CALÇANDO PÉS DE VIDRO? A SOLUÇÃO ESTÁ NO FIM DA AVENTURA, SOB A FORMA DE UMA PICARETA QUE NOS AGUARDA NO CIMO DA MONTANHA.
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Piso 0
Piso -1
Piso -2
Piso -3
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Piso -5.220.442


NÃO DESÇAS MAIS


A pressão absurda no interior do planeta Terra não consegue ainda assim dar uma ideia da pressão no interior do Universo. Palavra alguma sobrevive aí.


esmagadas umas contra as outras
as palavras penetram-se devoram-se aniquilam-se
líquidas no leitoso leito levemente azul-colorizado
onde o Nada nada
entre lentas larvas de lagartos lúcidos


ABRE OS OLHOS ─ BEM ABERTOS


A luz não se desloca, está, mas tem o rugido de triliões de toneladas de água despenhando-se do cimo de palácios da altura dos sonhos de Dali, quando Dali sonhava que Deus era um micróbio agarrado a uma partícula de pó que fazia cócegas num átomo de um pelo do bigode de Dali.


AH!...


gigantes com pantufas meigas
mordiscam moluscos magrebinos
e Minie namora o mel macio


…ESCUTA AS LEIS DO MOVIMENTO


Se conseguires focar o pensamento no instante deixado lá atrás, no instante deixado à superfície, perceberás o tempo e, ao mesmo tempo, verás os seres eternos que olham fixamente os mostradores das noras que ele faz rolar e de cujo movimento se alimentam, tornando imóveis todos os relógios no piso inferior da Grande Máquina.


derramam-se deuses derretidos
diurnos na data decorrente
do decurso de dramas delicados


É a febre dos moscardos que mantém vivo o tic-tac dos cronómetros. O sangue a latejar nas paredes internas do vulcão. Desejo e medo. Zigzag aflito de efemérides. Fervilhar insano do presente. Enquanto no interior do interior da espuma que os ponteiros largam, o teu futuro aguarda imóvel que vás desaguar nele.


as nuvens de néctar das ninfas
no meio dos caules dos nenúfares
namoram os cálices de bruma
convocam os ceptros de cristal


Quando o teu coração bater em uníssono com o eco das cavernas que se encontram por baixo da mais profunda de todas as caves que há no universo, então estarás imóvel e serás tudo e sempre e toda a parte.


no limiar da loja das lanternas
a luz de opala dos licores
liberta plácidos fantasmas


Há mil e uma forças que te puxam em todas as direcções e te fazem vibrar constantemente. Não tentes opor-lhes outras forças. Quando apontas a resistência numa dada direcção estás já a ser puxado numa outra direcção muito diferente. O segredo é seres para essas forças como um fantasma onde elas não se podem agarrar. Quanto mais transparente fores ficando, tanto mais livre. E cessarão as vibrações que te mantinham em perpétuo movimento. Finalmente imóvel, atravessarás os finíssimos poros que percorrem as paredes do tempo e entrarás em contacto com a eternidade.


SALTA!


o arfar dos motores imateriais
matraqueia metáforas na mente
memórias movendo-se metálicas
marcos e metros movediços
mandíbulas mastigam mastodontes
morte de Marte na maré do medo


AGUARDA…


Não tenhas pressa. A locomotiva não está à tua espera. Aqui já não há espaço a separar lugares, nem tão pouco os números que te contam, catalogam, classificam.


l’ordinateur n’a pas trop changé le métier de l’avocat


…ESPREITA PELA PORTA DAS TRASEIRAS DO FUTURO


a pesquisa pré-histórica provou
que o pânico na bolsa é provocado
por philosophos pacatos positivos


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DECRETO DE DESCARTES
Declaro aberto o Fundo Europeu para a Extinção da Arte
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os animais galgando a quatro e quatro
a longa escadaria do mosteiro
proibiram as cruzes nas capelas
ao abrigo da lei das sete alíneas
e do artigo do código de barras


STOP!


Suspende o pensamento e escuta o correr contínuo da Eternidade. Nada mais há além da música ─ segredo do todo indivisível separado em partes sem ruptura. Embebeda-te com a água das nascentes. Todas as nascentes são aqui e todo o delírio virá por fim desaguar nas margens movediças deste reino, nas bordas da ferida aberta pelo sim na cinzalama do Pré-Câmbrico, como sémen em busca da porta para o desenlace do qual nascerá a fonte primordial de todo o sémen, mas que só jorrará depois de fecundada.


FIM


que espécie de continuidade buscas tu além do fim se for a persistência da memória interrompida já vinte mil vezes se for apenas isso que espécie de continuidade


NÃO PENSES MAIS EM TI!


tu não existes
és um ponto onde se cruzam alamedas
a sede de luz da escuridão
a ânsia de paz da trovoada
a fome de amor dos códigos penais


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A PRAGA DOS PACOTES POLYESTER
perturbou A PRÁTICA DO SPORT
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Piso -∞


S          I          L          Ê          N          C          I          O


houveraaquipalavrasnoutraserasequiparadasaserrasetorrentes
erastosderestosdesementeslívidaslevadaspelamúsica


trovões no âmago esmagado do silêncio fundo
opacidades de opala e alabastro
odor das árvores despidas no inverno
sabor do ferro esquecido em alçapões
textura do solo de Getsémani pouco antes da Paixão


BASTAVA ALGUÉM GRITAR!


houveragenteaquinatransumânciadasplacasedostectos
erashumanastraídasporinsectos
carnívorosnosdentesenaraça
espaçoespalhadodortitoqueameaça
dissolvernaferaoinfinito


BASTAVA ALGUÉM CHAMAR


A noite que brilha e que é suave
O silêncio que geme e que sussurra
O vazio que treme e que fervilha


bastava alguém olhar

A ILHA

que nasceu da multidão múltipla dos nadas e cada nada amalgamado na profusão concatenada dos sentidos ─ correntes decorrentes das marés do mar que penetrou mais tarde na baía antigamente quando tudo o que então acontecia era ditado por deuses do futuro e a gradual alternância do claro escuro acalmava a ânsia e o delírio que a chegada do dia provocara na


Cantina nocturna eternamente à espera
De ter que esperar mais
Quando ninguém conhecia a primavera
Nem o fulgor dourado dos trigais.


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O vácuo perturbado CONTRAIU-SE. AS CORES DO UNIVERSO ENGRENARAM NOS DENTES LASER DA DENTIÇÃO DAS RODAS NACARADAS COM O ZUMBIDO GRAVE DO FELTRO SOBRE O VIDRO QUANDO AMPLIFICADO ATÉ ÀS DIMENSÕES DAS SUPERORELHAS DE DALI.
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Piso +1


MERCADO DE BENFICA


Na orla da grande capital, dentro de portas, no meio-dia das Eras Geológicas, no Novo Império, as cores do universo são concretas, podemos mastigá-las como um fruto ─ e tantos frutos, meu Deus!, de tanta espécie ─ e tantas raças e tão maravilhosas que é impossível não amar a vida ─ tanto pelo menos como a adolescente que fala ao telemóvel enquanto nos atende e se ri de nos ter dado troco a mais e ainda pede desculpa do engano e como brinde oferece a beringela que parece prolongar-lhe o corpo esbelto quando lhe toca lhe pega e no-la estende entre os dedos ágeis e maduros.

O som das engrenagens neste piso é tão agudo como o chilrear de pássaros e é um som que se choca com luzes e olhares e volições, e os sucessivos ricochetes das palavras de encontro às coisas produzem reverberações quase visíveis, levando até aos olhos odores, sabores, texturas que parecem cantar e dançar em torno das pessoas.

Os peixes prateados não se ralam nada de estar mortos e brilham mais do que brilhariam se nadassem nas cristalinas cascatas dos rios do Paraíso e estão tão felizes de estar nesta bancada como está feliz o sensato vegetariano que a alguns metros vai enchendo sacos com couves e alfaces cujo intenso verde atrai à distância o olhar de um caranguejo entretido a contar as sardas da deslumbrante ruiva que discute preços com um longínquo descendente de um imperador azteca.


secretamente seguidos por Saussurre
celebram os sátiros os celtas
e a descida dos céus sobre a cidade


O dia é tão real, tão nítido e tão sólido, nas formas que fluem como se fossem tinta, que custa pensar em mergulhar de novo no sombrio vaivém dos elevadores, no labor mecânico das horas que de noite constroem o esplendor calmo das tardes de verão que se prolongam até às margens dos lagos de nenúfares onde as ninfas descansam do amor.

Mas o edifício está longe de estar pronto ─ embora a profusão de cordas e andaimes forneça a perfeita radiografia de um corpo que não pode senão existir já em qualquer parte.


Julho/2014


Fernando Henrique de Passos

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