quarta-feira, 30 de maio de 2012

Menagem-Homenagem a Camilo Pessanha

(invoco, para o Astro, o Arcano da Estrela)

Carne de camélia, a branca enfastiada,
Aquela que de longe era Java, ou laranjeira,
Compêndios lavorava, as lavaredas liviava:
Na chamavam, à noute, a Feiticeira.

Mas quando a pétala, aberta, foi carmim,
Quando a cute era a perla, e a perla, a ridente,
Liberta foi a serpe, e eu disse, para mim:
«Eu vi, com olhos vi, eu vi uma Vidente.»

MENS AGITAT MOLEM

PAULO JORGE BRITO E ABREU


sábado, 26 de maio de 2012

Insónia das Galáxias

Quebram-se mastros
Contra os rochedos.
Esboroam-se astros
Entre os meus dedos.

Raios, trovões,
No mar, no espaço,
Nas vastidões
Por onde passo.

Praia encharcada,
Temporal escuro,
Água apressada
Que não seguro.

Os pés na areia
Pisando estrelas
E a maré cheia
Que vem varrê-las.

Cordas que estalam.
Estoira uma quilha.
Luzes que falam.
Noite que brilha.

Chovem planetas,
Chuva normal
E mil cometas
No areal.

Luas, poeira,
Estrelas-do-mar,
A praia inteira
A naufragar.

… Quebram-se mastros
Contra os rochedos...
... Esboroam-se astros
Entre os meus dedos…

26/5/2012

Fernando Henrique de Passos

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Turn of the screw

Com a devida vénia a Henry James

Asas de morcegos sem corpo
Tombavam das árvores
Por entre a fuligem da tarde.
Um arrepio de veludo
Roçou a face da rapariga loura.
Um coração batia dentro de uma sombra.
Um arrastar de folhas. Outra sombra.
O gelo no centro da alameda.
Dois olhos sem tamanho
Sorvendo o espanto do olhar azul.
O terror de três rubis na terra escura
Antes do raspar do fio da lâmina
No espelho enferrujado.

21/5/2012


Fernando Henrique de Passos

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Três Pastores Projectados nos Espaços Abstractos

no dia 13 de Maio de 1917

Vós acedestes aos espaços que transgridem
As leis ordinárias da matéria;
Onde as ideias não referem substâncias,
Onde o fluir não tem fluente,
Onde as imagens não se casam com palavras,
Onde os sons não podem verberar,
Onde a luz se cristaliza nas pupilas.
Presenciastes a forma inominável,
A forma onde cabe o mundo inteiro.
Respirastes um ar não feito de moléculas,
Sentistes calor sem vibração dos átomos.
Tudo era ternura, tudo era presença.
Lágrimas sem água corriam por vós e sobre vós.
A mão meiga e sem carne era etérea seda em vossas faces.
O olhar transparente deixava ver as estrelas incontáveis.
Doçura em estado puro correu em vossas veias como um mel,
Sem a mediação que deve percorrer distâncias.
Um sentido, um caminho, uma vontade,
Eram enxertados em vós como videira.
E quando esse vento imóvel vos deixou,
Permanecendo em vós ao mesmo tempo
Por um sortilégio dos espaços abstractos,
Vós dissestes:
Mãe!


11/5/2012

Fernando Henrique de Passos

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Os truques do espaço-tempo em redondilha maior

Pegando no lápis traço,
No centro do nevoeiro,
O risco firme e certeiro
Por onde abrirei o espaço.

Um punhal o rasgará:
Avanço, punhal em riste…
… mas o espaço não existe
Nem há um lado-de-lá.

Talvez durma e, sem saber,
Esbraceje dentro de um sonho.
Se assim é, então suponho
Que sei o que hei-de fazer:

Espero o tempo de acordar ‒
Um forte nunca desiste!
... mas já nem o tempo existe ‒
Não vale a pena esperar.

10/5/2012


Fernando Henrique de Passos

"D. Manuel II e D. Amélia - Cartas Inéditas do Exílio"

D. Manuel II e sua mãe, a rainha D. Amélia 

Lançamento do livro D. Manuel II e D. Amélia ‒ Cartas Inéditas do Exílio
de Fernando Amaro Monteiro (Editorial Estampa e Fundação Dom Manuel II).
Apresentação do Prof. Doutor Mário Artur Machaqueiro.
S.A.R. o Duque de Bragança, Dom Duarte Pio, assistirá ao lançamento.
O evento terá lugar no dia 16 de Maio de 2012, pelas 18h00,
no Salão Nobre da Sociedade Histórica da Independência de Portugal
(no Largo de S. Domingos, em Lisboa).

quarta-feira, 9 de maio de 2012

O Sorriso de Maria

Escuto e envolvo-me na ausência de qualquer som.
É noite no santuário. A capelinha parece abandonada.
As portas de vidro fustigadas pela chuva não estremecem.
A imagem de Maria sorri, sorri apenas para as estrelas vigilantes.
O seu olhar sereno descai lentamente no mar do silêncio.
É noite em Fátima. O sino da Basílica silenciou-se.
Ao longe, caminha uma velha mulher. Procura um abrigo.
Está ali, só como Maria. Só com um cesto na mão.
De súbito, sente que está perto da Mãe procurada.
Olha a capelinha apagada. Descobre, no véu de água
O sorriso de Maria. Ali está a Mãe reencontrada!
E, a tropeçar no aguaceiro, arrastando os pés doridos,
Sorri também. Suspira fundo de alívio. Como se sente
Perto daquele sorriso de Mãe tão Amorável!

30 de Março de 2012

                                                   Teresa Ferrer Passos

terça-feira, 8 de maio de 2012

Amor Vidente

(invoco, para a Musa, o Arcano da Força)

Generosa visão, que no conforto
Duma Alma tão sagaz veio tão cedo
Aplacar dos castigos o degredo,
Um beijo d'Amor dar no sacro Horto......

Generosa visão, eu estava morto.
Tu vieste baixinho, p'lo arvoredo,
E de deusa teus pés, o meu segredo,
Era meiga missão, e qual o porto.

Generosa visão, eu estou contigo.
Oh vem do mar nas águas, minha bela;
Vem ser tu meiga Mãe, vem ser abrigo,

Vem dar asas ao Vate e ser donzela.
Quero viver, ser seu, ser seu amigo,
Quero viver, morrer nos braços dela.


Lisboa, 27/ 01/ 1991

AMOR MAGISTER EST OPTIMUS

Paulo Jorge Brito e Abreu


Nota do Autor: este soneto foi publicado, em 1992, in «Agricultura Celeste».
Aqui se publicita, de novo, em letra de forma, com ligeiras e certeiras alterações...........


Bodas Alquímicas

PERSONAGENS

Ernesto Sampaio
Fernanda Alves


QUADRO ÚNICO

(o palco, só o palco, com tudo o que faz um palco, sem mais;
madeira, pano e cordas)


ERNESTO SAMPAIO – Da combustão do nosso encontro, duas partes se separarão: uma prosseguirá em vida, outra afastada será pela morte. Não morreremos juntos; um de nós sofrerá a ausência do outro, sofrerá a dor mais atroz… a solidão! Que destino tão atroz para aquele que ficar…
FERNANDA ALVES – Que dizes, amor?
ERNESTO SAMPAIO – Temo por um de nós; temo pelo que ficar. Contra o mundo sórdido, contra a matéria abjecta tivemos nós, maravilha, o nosso Amor; vivemos sempre em fogo, enquanto à nossa volta tudo era cinza.
FERNANDA ALVES – Respiramos do lado da luz!
ERNESTO SAMPAIO – Tu és a Rosa do fogo incendiário, a Rosa nua de brancura, a Rosa branda e mística. Desta morada fazes o Paraíso e do seu tecto o céu em fogo.
FERNANDA ALVES – Sem o teu coração ardente o Inferno da abjecção não podia ser redimido.
ERNESTO SAMPAIO – Que será daquele que aqui ficar sem o outro?
FERNANDA ALVES – Nada temas. O que ficar tem o palco genial da Saudade, onde a Morte consente à Loucura a própria Vida. É o palco do teatro onde sempre me viste e onde sempre fui tua. Tantas para os outros e sempre a mesma para ti, que és a Loucura, o Delírio, o Ardor, a Poesia. Nunca chorarás de solidão. A solidão é impossível, amor.
ERNESTO SAMPAIO – É a Saudade que nos salva?
FERNANDA ALVES – Como salvou Pedro depois de perder Inês. Que ilusão feliz e magnífica o beija-mão real de Santa Clara! É a máscara do bonecreiro que liberta o ser do mundo; a máscara dá a liberdade de ser tudo e nada. Pelo teatro somos todo o mundo e ninguém; estamos presentes e somos ausentes. Só o teatro liberta e nos deixa amar.
ERNESTO SAMPAIO – Com a morte dum de nós passar-se-á do Amor à solidão. A morte é o momento em que nos roubam a ilusão da máscara. A máscara é a eternidade! Como me poderás amar sem a máscara?
FERNANDA ALVES – Nada receies, amor. A máscara nunca desaparece. Continuo a ser todas as mulheres que fui em palco; nada passa, tudo fica. Ainda hoje tenho em mim a força da grande imprecação diante das muralhas da cidade. Quanto mais me dou às máscaras, menos sou minha. Ser minha é ser o que me impede de ser tua. Quanto menos minha, mais tua, amor.
ERNESTO SAMPAIO – A máscara é a Poesia, o Oiro alquímico! O mundo é a História, o chumbo tóxico. Mas a Morte interrompe a Obra…
FERNANDA ALVES – Não! A Morte não interrompe! A Obra só rompe quando falta o Amor.
ERNESTO SAMPAIO – Aquele que ficar da combustão do nosso encontro, viverá então a Morte como uma operação do Amor.
FERNANDA ALVES – No momento em que um de nós se sentir só, morre. Morre, porque a Morte é uma operação do Amor e o Amor não suporta a solidão. Se um de nós sobreviver ao outro, como temes, só em Saudade poderá viver. Em solidão, morre. A Saudade é eterna; quem vive em Saudade nunca morre. Só morre o que passa da Saudade à solidão.
ERNESTO SAMPAIO – E a Morte será a fuga à solidão.
FERNANDA ALVES – A Morte será o sinal mesmo da impossibilidade de estar só. A Morte será o Amor.

(o Enxofre e o Mercúrio beijam-se ao rubro)


António Cândido Franco

domingo, 6 de maio de 2012

A Última Nau


Fragata Bartolomeu Dias (2012)



Levando a bordo El Rei D. Sebastião,
E erguendo, como um nome, alto o pendão
Do Império,
Foi-se a última nau, ao sol aziago
Erma, e entre choros de ânsia e de pressago
Mistério.

Não voltou mais.
A que ilha indescoberta
Aportou? Voltará da sorte incerta
Que teve?
Deus guarda o corpo e a forma do futuro,
Mas Sua luz projecta-o, sonho escuro
E breve.

Ah, quanto mais ao povo a alma falta,
Mais a minha alma atlântica se exalta
E entorna,
E em mim, num mar que não tem tempo ou ‘spaço,
Vejo entre a cerração teu vulto baço
Que torna.

Não sei a hora, mas sei que há a hora,
Demore-a Deus, chame-lhe a alma embora
Mistério.
Surges ao sol em mim, e a névoa finda:
A mesma, e trazes o pendão ainda
Do Império.

Fernando Pessoa, Mensagem (1934)

sexta-feira, 4 de maio de 2012

O Dia de Hoje

Aproveitemos o nosso único instante de sofrimento!... não vejamos mais do que o momento presente!... um momento é um tesouro…



A minha vida é só um instante, uma hora passageira
A minha vida é um só dia que me escapa e me foge
Tu sabes, ó meu Deus! para amar-Te na terra
Só tenho o dia de hoje!...


Momento a momento pode-se aguentar muito!


Não sou como as pessoas que sofrem pelo passado, que sofrem pelo futuro. Eu só sofro no momento presente. Desta forma não sofro grande coisa.

Santa Teresa do Menino Jesus, Obras Completas,
Edições Carmelo, 1996, pp. 402, 674, 1135, 1285

quinta-feira, 3 de maio de 2012

O Legado de Pitágoras



Os enxames de areia na cabeça
Do velho que só sabe matemática.
O interior de uma praia abandonada.
Os inúmeros choques das ínfimas partículas
De encontro às cavernosas paredes do seu crânio.
As asas de pedra laceradas que raspam no vazio.
Desertos corredores com noite ao fundo.
Símbolos e múmias.
Luzes de néon a brilhar no fim do Espaço.
Silenciosas palavras geométricas:
Rectas, quase sempre, e alguns círculos.
Os zumbidos dos fósseis dos insectos.
A casa assombrada ao meio-dia
Quando o centro de um eclipse precoce
Cobre de gelo os seus espelhos.

… a mão estendida para o nada
Agarra um poema.
E o poema sangraria
Se tivesse sangue.

2/5/2012

Fernando Henrique de Passos


terça-feira, 1 de maio de 2012

As Oscilações Harmónicas

Deve haver uma maneira de olhar as coisas todas,
Os espaços entre formas e pessoas,
Os escravos que vão por avenidas
No delírio das tardes passageiras.


ah… a porta vai-se abrir
havia ali palavras
a tessitura da poesia
as formas recorrentes

Um navio atraca à porta do café.
Poesia:
O capitão anota no diário
O estrangulado trânsito cinzento.


citadino
o matraqueamento dos motores
o espesso nevoeiro
as formas recorrentes

Deve haver uma maneira de olhar as coisas todas,
Um ponto oculto.
Todas as redes têm falhas
Por onde o sol mergulha.


a repetição dos textos sem sentido
sentidos emergentes
o sentido correndo pelas formas
como água por canais

Deve haver uma maneira de olhar as coisas todas
Que seja semelhante a respirar.
(Curioso estado do éter luminífero
Que se quer transformar em sucessivos impulsos de poesia.)


havia ali palavras
citadinas
ofegantemente descentradas
a respirar ideias

O capitão pegou na pena do seu pato;
O capitão convocou o pré-fonema exacto;
O mar fustigava as portas do saloon;
Serpentes sorviam açúcar ao balcão.



ah…
os sons que se organizam
o pêndulo de prata
(não me posso esquecer de respirar)

Um caminho entre as pessoas e as formas;
Um matraquear matraqueante;
A cadência que embala os marinheiros;
O relógio de sala do navio.


contar os sopros
as palpitações
a hipnose das palavras
(não me posso esquecer de respirar)

O som dos escapes a marulhar nas rochas.
Ah, a recorrência das imagens,
As vibrações do éter no bistrot,
A legislação dos actos da matéria.


formas
pessoas
palavras
redes

Deitados no convés da realidade,
Olhando o azul do firmamento.
Ah, os espaços entre as cores,
Notas de música paradas.


que as palavras digam menos
para conter e contar mais
invólucros vazios
recebendo as sensações do espaço

Cristalizando a forma das marés,
Detendo o arrastado arrastar dos dias e dos anos,
O navio imóvel à porta das palavras,
Desertas amuradas sobre o mar.


ah… a porta vai-se abrir
o portão das formas recorrentes
a auto-referência dos sentidos
as vibrações do tempo

Reduzindo ao mínimo a poesia
O choque das ondas contra o casco
Repetia a velhíssima canção
Dos sons parados como estátuas.


a lógica dos sons
sincopar mais
rendilhar as estruturas
repetir re-pe-tir re…pe…tir

A prolongada repetição das mesmas formas
Provocará a ilusão de uma poesia;
Rebentarão as imagens como sóis,
A quilha do navio será um gume.


ah… a porta vai-se abrir
as dádivas dos deuses
dançar nas nuvens e nas ondas
romper o tempo com as formas

O gume das serpentes sobre o mar
Quer forçar as portas do saloon.
A sirene atravessa cinzentudes,
Os marinheiros amotinam a manhã.


ah… a porta vai-se abrir
se os sons se organizarem
(não me posso esquecer de respirar)

O capitão empunhou uma escopeta,
As serpentes caíram sobre o mar.
O diário encheu-se de vermelho,
A cerração abriu-se à claridade.


ah… a porta vai-se abrir
(não me posso esquecer de respirar)

Três figuras à porta do saloon
Sorviam sons pelas portas das narinas.
Uma avalanche de ideias como pedras
Levou consigo as mesas e cadeiras.

a porta abriu-se Ah!
28/4/2012

Fernando Henrique de Passos